quarta-feira, 23 de março de 2022

Romance da Raposa (2.a parte, III)

 RESUMO DO CAPÍTULO 3 – 2ª. PARTE

A Comadre Salta-Pocinhas estava trôpega, caduca, magra, com reumático, a pele  a cair.  Mantinha-se lúcida, refinara a astúcia e a manha.

Ela nunca mais caçara, não tinha forças para o fazer. Andava a pedir comida pelos bosques, serras e aldeias.

No Verão, o que lhe valia era a astúcia cada vez mais sabida e apurada. Vivia dos grilos, ralos, rãs, insectos e das maçarocas desfazendo-se em rebuçados de farinha, leite, mel e espigas mais cheias que desfolhava e comia com prazer.

O Inverno era a pior altura do ano para a sua saúde, fazia muito frio. Ficava na toca toda enrolada, a dormir dias inteiros sem nada comer.

O que a fazia estar viva eram os momentos em que adormecia, e pensava o que tinha vivido com o Raposão: a cumplicidade entre ambos, as aventuras das caçadas e o amor que sentiam um pelo outro.

Naquele ano, o Estio foi muito quente: trouxe consigo uma terrível praga de pulgas, os bichos não lhe viam o fim. Resolveram ir até à toca da Raposa conhecida por ”mezinheira e “benzedeira”, esperando que tivesse solução para o problema.

Disse-lhes que ia tentar resolver o assunto, mas que para isso todos teriam de lhe entregar uma peça de caça e cumprir à risca as instruções que lhes fossem dadas.

Todos aceitaram. Mandou cada um para seu lado, em silêncio e não sabendo de nada uns dos outros, todos mergulharam na água da ribeira e as pulgas ficaram no musgo que tinham de colocar na boca.

Mais uma vez, a Raposa conseguiu ter comida para algum tempo sem se preocupar.

Como sempre, valeram-lhe a astúcia e a manha cada vez mais apuradas.

Carmo Bairrada

Azeitão, 05-03-2022

CAPÍTULO III

A Salta- Pocinhas estava cada vez mais magra e mais fragilizada. A idade ia comprometendo, de forma progressiva, a sua agilidade e a sua destreza, dificultando-lhe os movimentos. Ainda assim, a matreirice e a astúcia, suas imagens de marca, haviam-se tornado, com o passar do tempo, mais apuradas contribuindo decisivamente para a sua sobrevivência. Graças a esses predicados, ia ludibriando a bicheza mais miúda: visitas a capoeiras, captura de coelhos ou qualquer outra vítima mais encorpada há muito lhe estava vedada.

No inverno tudo piorava. O frio e a fome obrigavam a longos recolhimentos em letargia acentuada. Era importante não desperdiçar a pouca energia que lhe restava. Nestas alturas recordava o passado, os bons tempos vividos com o raposão seu companheiro de sempre, a vida alegre e farta que tinham tido, os folguedos então vividos, as caçadas bem-sucedidas: tudo lhe passava pela cabeça naqueles instantes.  

A vida já não era como outrora. Sentia-se abandonada por toda a bicharada. Até as próprias raposas mais jovens, inexplicavelmente, se afastavam dela. Ainda assim, a sua fama de curandeira continuava a ser reconhecida. Por isso, sempre que alguma maleita atormentasse a bicharada, logo procuravam a Salta - Pocinhas a as suas milagrosas mesinhas.

Foi o que aconteceu com a chegada do verão. Com ele veio uma praga de pulgas, que viria a atingir quase toda a comunidade. Perante tal sofrimento e tamanho desespero, foram pedir socorro à velha raposa.

Eram filas de pacientes, à porta da Salta - Pocinhas, aguardando a sua vez. Todos levavam, como meio de pagamento, fartos farnéis que a raposa de forma ordenada ia guardando na despensa.

A todos prescreveu igual receita: “procura de um ribeiro, colocação de um pedaço de musgo nos dentes e mergulho na água, deixando o musgo de fora o quando baste”. A todos os pacientes indicou direções diferentes na procura do ribeiro e a todos avisou que a divulgação da receita significaria a perda da sua eficácia.

Como sempre, a mesinha funcionou. As pulgas, uma vez na água, tratavam de saltar para o musgo, abrigo privilegiado, onde podiam respirar.

Mais uma vez a Salta - Pocinhas havia conseguido os seus intentos. A sua despensa, por um tempo generoso, estaria abastecida.

Fernando Amaral

Abril 2022 

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