“PELA
LEZIRIA, COM MIGUEL TORGA”
O
carro rodava lentamente pela estrada esburacada e poeirenta, naquela manhã de sol radioso e quente. De um lado o Tejo, estreito fio
de água límpida, na sua viagem rumo ao estuário em Lisboa; do outro, a
lezíria
Ribatejana, a cerca de arame farpado que limita a herdade, para lá
da qual pasta uma imensa manada de touros bravos. Parámos paraos
admirar. Uma enorme mancha escura na paisagem verdejante!...
Ruminavam
calmamente. Uns deitados à sombra das muitas árvores ali existentes,
outros passeando sobre a erva tenra e verde. Saímos do carro e aproximámo-nos
da rede. Saindo da manada, um enorme touro negro correu para junto da vedação.
Olhava-nos com a mesma curiosidade que nos levou até ali. Naquele olhar aquoso e
meigo, não havia
nada de agressivo. Aproximou-se mais um pouco, enquanto nós
recuávamos.
Do nada, apareceu uma figura, uma dupla imponente: um homem
idoso, montado num cavalo negro: pareciam homem e cavalo saídos
de um quadro primorosamente pintado!
-
“Não se aproximem por favor!“
E
ao mesmo tempo, chamou:
-
“Malandro, vem cá! É que ele não é o que parece, cuidado!” - disse como que à
guisa de justificação.
-
Como lhe chamou? -perguntou alguém. O campino explicou:
_ “Chama-se assim, porque parece dócil, mas
quando embesta é o diabo!”
O
Malandro nem se moveu. Fixou em mim os seus belos olhos e aproximou-se um pouco
mais do local onde eu me encontrava. Senti vontade de lhe tocar, mas
cobardemente não o fiz. Estremeci tão visivelmente, que um amigo perguntou:
-
Estás com frio?
-
Não – respondi. - Estou com Miguel
Torga.
Todo o grupo riu imenso, sem perceber o que
tinha Torga a ver com o que se estava a passar. Riam ainda quando voltámos ao
carro.
O Malandro raspou o chão com tanta força, que
arrancou alguns bocados de erva.
-
MUUU! - Berrou ao mesmo tempo que seguia o carro com o olhar. Contínuo a pensar
que foi para mim aquela despedida. Eu e Miguel Torga estamos em perfeita
sintonia no que diz respeito aos sentimentos dos animais…Como pode ser feliz um
animal habituado à lonjura imensa da campina onde nasceu, sob o céu azul, o sol
escaldante o murmúrio do Tejo, a figura do campino, quando é preso num estreito
e escuro curro?
Pensei
no Miúra, que Torga tão bem retrata! Tal como ele, o Malandro irá escutar a
música, as palmas, os gritos da multidão que irão aplaudir aquele
homem brilhante, que agita “um trapo vermelho” e o vai provocar continuamente
para satisfazer a multidão delirante. O homem brilhante empunha
uma espada e é o fim da vida livre de quem tendo sido um rei na
imensidão da lezíria. Acaba assim profundamente humilhado.
Mas nem sempre o homem brilhante sai vencedor…
Descuide-se ele um pouco e vai pelos ares na ponta daqueles cornos monumentais,
pois então!..
Elita
Guerreiro*7/3/2018
No conto intitulado “Miura”, Miguel Torga retrata de uma forma muito fiel e realista o sofrimento de um pobre touro destinado a representar nas touradas.
Não gosto de touradas. Sempre me impressionou o sofrimento dos infelizes animais, retirados do seu “habitat” natural para irem divertir as pessoas que apreciam esse espectáculo bárbaro e sanguinário.
É um facto que nas touradas há todo um cenário de luz, cor e música, que emprestam certa beleza àquele ambiente. Mas, o que atrai principalmente os espectadores, é a luta entre o homem e o animal, num confronto de forças em que o primeiro, pela sua habilidade, inteligência e destreza, tenta vencer a força física, muito superior, do segundo.
Tudo isto seria interessante se não implicasse um sofrimento horrível para os pobres animais.
É verdade que os toureiros arriscam a vida. É lamentável, mas fazem-no voluntariamente.
O touro é arrastado à força para um espaço exíguo, em que se sente horrivelmente desorientado, ansioso e humilhado.
Miguel Torga descreve, de uma forma magistral, não só o sofrimento físico de Miura, mas também os seus sentimentos. Porque Miura não sofre só a dor física. Mais intensa e profunda do que esta, é a mágoa cruel causada por os seus sentimentos mais nobres serem feridos de uma maneira brutal:
- Primeiro, foi-lhe roubada a sua liberdade quando o arrancaram da lezíria ribatejana, onde tinha nascido e fora criado - uma planície cheia de sol e de espaço - para o encurralarem num cubículo apertado, onde não sabia o que lhe iria acontecer.
- Depois, a sua dignidade foi aviltada, quando percebeu que ele, Miura, o rei da campina, estava condenado a ser apenas um objecto de diversão e escárnio.
Seguiu-se a revolta, a cólera, a angústia, a raiva.
Miura explodia de dor e a multidão, que vibrava de satisfação por o ver enraivecido, aclamava tanto mais quanto maior fosse a sua explosão de indignação e fúria.
E, por fim, a terminar aquele sofrimento indizível, a recompensa que obteve foi a morte. Morte que, para ele, foi um alívio. Mas a multidão, brutal e selvaticamente, continuava a aclamar, com música, gritos e palmas, muitas palmas!...
19/02/2018
Maria Leonor Marques
Miura
No conto “Miura”, Miguel Torga volta
a defender os animais, ao insurgir-se contra o espetáculo das touradas. Interessa
relembrar que os primeiros registos daquela cultura tradicional remontam ao
século XII. Em 1836, durante o governo de Passos Manuel no reinado de D. Maria II,
foi decretada a abolição das touradas em Portugal. Porém, devido a pressões
diversas, nomeadamente das Misericórdias e da Casa Pia, proprietárias da maior
parte das praças de touros do país, as touradas foram de novo autorizadas com a
condição das receitas dos espetáculos reverterem para instituições de carácter
social. Assim, o lado solidário do espetáculo tem mais a ver com a estratégica
para salvar as touradas do que outra qualquer razão benemérita pura. Miguel Torga,
com este conto, juntou-se ao grupo daqueles que, desde há muito, se insurgem e lutam
contra estes espectáculos próprios da insensibilidade de outros tempos.
Desta vez, dá voz ao touro bravo
“Miura”, nascido e criado na lezíria ribatejana. Miúra conta-nos a sua situação
de prisioneiro, prestes a entrar na arena para gáudio da multidão humana. O
animal tenta libertar-se, mas em vão. A sua força, a sua raiva e a sua
agressividade não conseguem contrariar a lei do mais forte e evitar a sua
entrada forçada na arena. À semelhança de muitos outros touros, irá participar
num espectáculo deprimente, onde será maltratado,
humilhado e obrigado a lutar, de forma desigual, perante uma multidão ávida de
emoções e de sangue. Durante a lide, o martírio foi longo, cruel, debaixo de
grande algazarra da multidão, de muitos incentivos aos toureiros, gritos,
assobios… e de muita música vinda da charanga da praça. A certa altura da
refrega, Miúra atinge um dos seus algozes. Por fim, perante uma última
investida do um novo opositor, que empunhava uma espada com selo de morte,
apercebeu-se do que ia acontecer ali, em público, de uma forma cruel e
espetacular. Face a essa certeza, decidiu apressar a sua morte, facilitando o
trabalho à lâmina que o procurava atingir.
Fernando Amaral
Fevereiro de 2018
“OS BICHOS” DE MIGUEL TORGA
CONTO Nº. 12 «MÍURA»
A) - O porquê do
nome
O
nome Miura, que deu título ao Conto, é quase um elogio que Torga faz a uma raça
de touros, considerada das mais perigosas e bravas da Península Ibérica.
B) – A Mensagem
O
autor, através do texto, faz-nos reflectir sobre o problema dos maus-tratos, que são
infligidos aos animais pelo próprio Homem, somente por pura diversão.
O
touro é também um ser vivo como todos os outros animais, como todos os seres
humanos… por isso, não merece o tipo de tratamento que lhe é dado.
Há
muita gente que considera a tourada como uma tradição ou um passatempo, mas outras
pessoas há, que acham este espectáculo degradante e absurdo. Parece ser esta,
também, a maneira de pensar do autor.
C) – A Crítica Social
Com
este conto, Torga parece querer dar-nos a sua opinião, criticando a injustiça da
tourada para com o touro que, para além de satisfazer o prazer do homem, passa
por um enorme sofrimento.
D) – A Actualidade
do Conto
A
tourada remonta há séculos atrás, e consegue chegar aos nossos dias com muitos
adeptos.
Existem
várias associações ligadas aos direitos dos animais, que lutam há anos para que
as touradas sejam definitivamente proibidas em Portugal.
Não
há luz ao fundo do túnel, nem se vê jeito de que isso venha a acontecer.
Entretanto,
os touros continuam a ser maltratados. Tudo não passa de um “um jogo” que pode levar à morte do animal
ou do próprio toureiro, por vezes de forma trágica.
E) –Valores,
Sentimentos, Emoções e Atitudes
Torga
relata sentimentos e emoções como a
frustação, a humilhação e o sofrimento , que o touro sente antes de entrar na arena
e, já na arena, a coragem, a angústia e, mais tarde, a constante espera da
morte.
Ex: “o
manequim de lantejoulas,”(pág.113).
“Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor
de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair do domínio dos chifres.”
(pág. 114).
Miura
já está a sofrer, quando lhe espetam vários ferros pontiagudos no cachaço, até
à exaustão e, por fim, uma lâmina fina trespassa-o até às entranhas. É a morte!
“Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a
bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão,
entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.” (pág. 117)
O
que se passou naqela arena, dá que pensar!
- Este
Mundo em que vivemos, não andará de cabeça para baixo?
- Afinal
quem é que é selvagem?
Miguel
Torga questiona as ideias pré-concebidas, que existem sobre as touradas, e
acabe por pôr em xeque a natureza do homem, supostamente, civilizado.
Azeitão,
26-02-2016
Carmo
Bairrada
Obra:
OS BICHOS
Autor:
Miguel Torga
Editora:
Coimbra
7ª.
Edição revista em 1970
Sem comentários:
Enviar um comentário