sábado, 3 de março de 2018

Para uma análise do conto "Morgado", in Bichos de Miguel Torga

Breve reflexão sobre o conto “Morgado”
de Miguel Torga

Salvar a própria vida à custa de outra vida, nada parece mais desumano…
E, no entanto, nada é tão humano como o instinto “animal” que se apodera de cada um de nós, quando sentimos que a nossa vida está em perigo.

Senão vejamos: nas guerras, alvejamos sem piedade o inimigo ameaçador  para nos salvarmos do tiro que dele possa vir. Matamos sem pestanejar o nosso semelhante.
Na caça, se se nos depara um animal maior que nós e que há perigo de ataque – para já não falar de quando não há perigo nenhum, mas aí trata-se de outro assunto – não há outra solução senão matar sem estados de alma…
Outros exemplos poderiam ser encontrados, mas fiquemos por estes dois que são já bastante eloquentes para exemplificar este nosso instinto de conservação.

Seguindo estas premissas, no conto do burrinho “Morgado”, Torga dá-nos uma demonstração bem clara desta condição desumana do humano. Por muito que nos custe reconhecê-lo ou porque o personagem nos é particularmente simpático ou, simplesmente, porque gostamos dos animais e os defendemos, a situação proposta não deixa dúvidas quanto ao desfecho que se anuncia já ao primeiro uivo de um lobo…

Sabêmo-lo bem, ó humanas criaturas, e não há volta a dar-lhe : salvamos a pele do almocreve, sacrificando a vida do Morgado, que é apenas um burro!
                        
M.F. 7.2.18

MORGADO

Não sei se já se chamaria Morgado ou se foi o novo dono que lhe deu esse nome. O que sei, é que naquele dia, de feira, quando o seu preço
ficou estabelecido em dezasseis libras, se sentiu muito feliz. Feliz e livre
das garras do moleiro Preguiça, um sujeito bêbedo e cujo palavreado deixava muito a desejar…Por isso quando aquela mão robusta lhe assentou uma forte palmada no flanco, como que a dizer “Agora és meu”, nem pestanejou. Com o novo dono sobre o lombo, partiu à desfilada, a caminho da nova morada como se carregasse uma cesta de flores ou um saco de algodão. Sabia o que o esperava.
Ser macho de almocreve nunca foi tarefa fácil!... Mas ele não tinha medo do trabalho. O novo dono tratava-o bem. Bem alimentado e tudo o mais de que necessitava para ser feliz. Dava gosto trabalhar assim. O homem era bom tipo, bem disposto, de vez em quando metia-se com o Morgado e dizia uma graçola brejeira. Que raio, a vida não é só feita de trabalho,um homem também precisa que o animem, que de algum modo lhe estimulem os brios! Naquele dia, depois de retoiçar na erva fresca e tenra, entrou com ele como que um pressentimento, que se agravou quando à ceia o dono lhe falou com ar preocupado e lhe negou as festas do costume. Estava sério, estranho! Ordenou-lhe que comesse bem e
informou-o de que partiriam antes do sol nascer, para uma caminhada de seis léguas pela serra. Mau, mau!... Aquilo vinha ao encontro do que o seu coração pressagiara. E lá partiram. Na serra, as pedras nuas e silenciosas e a chuva irritante eram a única companhia. A carga pesava, pois já não era tão forte como antes. À sua frente, o dono segurava-o pela arreata: estavam juntos, era a mesma equipa de sempre. Mas o diabo do pressentimento não o largava. O almocreve também “ não as tinha todas na malhada, “como é costume dizer-se, quando alguém sente medo, mal disfarçado.
Na escuridão fria e chuvosa, a serra despertou com o som dum uivo medonho. Andava por perto uma alcateia faminta. Escapar-lhe naquele ermo era muito difícil. Aproximavam – se num galope louco, os olhos faiscantes e as respirações ofegantes. O almocreve, ingenuamente, tentava tirar duma pedra com a sua faca  algumas faíscas ou batia fortemente as solas das botas no chão. Em vão, tudo em vão! O pobre Morgado já tinha à ilharga uma das feras. Desejou que o dono tivesse uma arma, que fizesse pelo menos um disparo para afugentar os lobos. Mas não. Cortou a corda que prendia a carga e, desesperado, tentou saltar para o dorso do Morgado, que já sentia os dentes aguçados das feras, ferrados no seu corpo. A tardia madrugada foi aos poucos iluminando  aquela cena aterradora! Foi então que o pobre Morgado, num último alento, ergueu a cabeça e reparou que o homem a quem tão fielmente servira o havia abandonado, praguejando e lamentando as dezasseis libras que gastara na sua compra.
Ali estava ele, Morgado, o bicho à mercê de outros bichos, dando a vida para que um outro bicho, o homem, salvasse a sua própria vida.

Elita Guerreiro * 21/2 /2018.


Os Bichos de Miguel Torga 

Introdução

Confesso que, ao longo da minha vida, não tenho sido um leitor assíduo da obra de Miguel Torga. Porém, desde há muito que o seu nome me soa como figura importante no panorama literário nacional. Retenho na memória o transmontano ilustre que escreve sobre a sua terra, sobre as suas gentes e é referência para muitas pessoas ilustres e influentes do nosso país. Estes ilustres citam-no, com frequência, para suportar as suas ideias e os seus discursos. Mais recentemente, a leitura e a análise que tenho feito de alguns contos de Miguel Torga, inseridos no livro “Bichos”, tem melhorado o meu conhecimento, ainda débil, sobre o autor e a sua obra. De qualquer modo atrevo-me a descrever, de seguida, meia dúzia de tópicos que poderão caracterizar a visão atual que tenho deste escritor nascido e criado, entre trabalhadores do campo, nas terras agrestes para lá do Marão.

 Vejamos:

  • ·        Português e transmontano de primeira água;
  • ·        Homem profundamente ligado à terra, às suas gentes e fiel às suas raízes;
  • ·     Admirador do género humano porque, apesar de entregue a si próprio, limitado, mortal e exposto, consegue inovar e ser criativo.
  • ·      Crítico da divindade transcendente que, enquanto sobrenatural, tem a sua tarefa facilitada sobre a natureza; 
  • ·       Conhecedor do povo transmontano, da natureza onde se movimenta e dos bichos que o servem e a completam.
  • ·      Respeitador dos animais em geral e particularmente daqueles que ajudam o homem no seu dia-a-dia;
  • ·      Crítico do comportamento do ser humano para com os animais, nomeadamente quando ocorre perda de liberdade, captura e maus tratos em geral. Dá-lhes voz, em muitos dos seus trabalhos, para atingir esse desiderato.


Reflexão sobre o conto Morgado 

No conto “Morgado”, Miguel Torga dá, frequentemente, voz a um jerico que vive e trabalha com um almocreve, ajudando-o na sua actividade diária. O animal “conta-nos” a sua relação com os donos, o modo como foi vendido e comprado, a forma como foi tratado e alimentado e, finalmente, o drama que conduziu à sua morte violenta, consumada por lobos esfaimados, quando se viu solitário e abandonado pelo dono. O modo como o Morgado nos relata os diálogos entre humanos e a maneira como descreve os seus comportamentos, conduz-nos a uma situação invulgar onde a história é vista pelo lado inverso. As fraquezas dos homens e o seu comportamento, por vezes, pouco solidário com os animais que o servem, são expostos de forma clara.
Ao invés, constatamos a atitude vertical dos animais, que convivem com o homem, em todas as vertentes: amizade, companheirismo, ajuda, bravura e heroísmo. Afinal, todos nós humanos, perante situações desagradáveis ocorridas entre nós e outros, com frequência, usamos o desabafo: “quanto mais conheço os homens, mais gostos dos animais”.
Durante a leitura, por momentos, Morgado impõe-nos a sua voz. Deixamo-nos envolver pela sua descrição, tal a autenticidade que o autor lhe empresta. A visão que Miguel Torga tem do homem, da natureza e dos animais que a povoam torna-se evidente. Admirador do género humano, Miguel Torga não esconde a ternura e o reconhecimento que tem pelos bichos, bem como o importante papel que todos eles desempenham, no dia-a-dia, junto do homem e da natureza.

Fernando Amaral
Fevereiro de 2018





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