“OS BICHOS” DE MIGUEL TORGA-
CONTO Nº. 14 (Último) «VICENTE»
Este
conto é o que fecha a colectânea “Os Bichos”, onde Miguel Torga recria a
narrativa bíblica de há 2000 anos, do Livro Génesis, que retrata o Dilúvio
Universal.
O
personagem principal é um Corvo Negro, de nome Vicente, um dos passageiros da
Arca de Noé que, ao ter conhecimento do castigo divino por pecados cometidos
pelos homens, anseia a todo o custo a Liberdade. Ele não acreditava que os
bichos tivessem alguma coisa a ver com os problemas humanos.
Após
40 dias encerrado na Arca de Noé, Vicente ultrapassou o seu estado de
sobrevivência, sentiu uma vontade enorme de se tornar insubmisso para com Deus
e desobedecer a Noé. Assim foi. Fugiu.
Noé
não deixou de ser, fortemente, interrogado por Deus quanto à fuga “do
seu servo corvo”.
Ele
defende-se: “não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a
ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão, que o levou
(…) Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim (…)”.
Vicente
foi corajoso, rebelde e destemido, conseguiu vencer o medo e, de asas abertas, enfrentou
a imensa vastidão das águas.
Saiu
dum espaço seguro sem qualquer rumo, indo à procura de um lugar onde ele e
todos os outos pudessem ser felizes e livres.
Passaram
muitas horas e, de repente, viu diante de si o topo dum velho tronco de árvore emergindo
das águas, onde se apoiou com as suas fortes garras. Ao longe, um pequeno
pedaço de terra também apareceu no horizonte.
Este
conto, para além de simbolizar um momento grande para a Humanidade e para todos
os Animais, faz com que entre os dois grupos passe a existir uma estreita
relação. Por esse motivo, «Vicente pode ser, claramente, cada um de nós.»
A
desobediência do Corvo perante o poder de Deus, e o poder de Deus perante a
determinação do Corvo, fez com que a sua obra se salvasse. O Criador cedeu fechar “melancolicamente,
as comportas do céu,” para que a Criatura conseguisse o
que tanto ambicionava: a Libertação Universal.
Torga
evidencia, aqui, o outro lado da medalha: a
figura de um Deus poderoso e castigador é substituída por um Deus libertador e
de perdão, dando à Criatura a
possibilidade de conseguir alcançar o seu Ideal.
Para
o autor, todo o caminho de vida humana passa pelo conhecimento e entendimento
do próprio ser humano em arranjar uma maneira de restabelecer o equilíbrio com
a Terra-Mãe.
Para
Vicente (o Corvo), a terra é a sua fonte de equilíbrio, que lhe irá
proporcionar o que ele deseja, A pouca terra que descobriu é, para ele, a
estabilidade de um colo de mãe, onde poderá voltar sempre que necessite.
Assim,
o ideal de Liberdade do Corvo Vicente só se poderá completar, quando todos se
ligarem, verdadeiramente, à Terra-Mãe.
#A LIBERDADE É POIS O GRITO QUE ENCERRA A
OBRA#
Azeitão, 31-01-2018
Carmo Bairrada
Os Bichos de Miguel Torga -
Vicente
No conto “Vicente”, Miguel Torga utilizou
o episódio bíblico do dilúvio, adaptando-o, de modo a passar uma mensagem, bem
clara, de liberdade e de revolta. No texto bíblico (Génesis, Lisboa, Difusora Bíblica, 1994, pp. 9-11), podemos ler: “Noé aguardou
ainda mais sete dias, depois tornou a soltar a pomba, mas, desta vez, ela não
regressou mais para junto dele”. Verificamos assim que, na versão bíblica,
a pomba é a protagonista. Já no conto
em análise, Miguel Torga elege o corvo como protagonista. Vicente, após 40 dias
na barca e tendo em conta a situação confrangedora e humilhante dos bichos ali
retidos por ordem de Deus, decidiu abandonar o cativeiro, “abrir as asas” e
partir. Partiu, revoltado, porque não compreendia a razão dos bichos estarem a
pagar pelos erros dos homens. A ousada atitude de Vicente significava, naquele
instante, revolta, desobediência, coragem, defesa da liberdade para todos. Por
isso provocou, em todos os animais residentes na arca, um clamor de respeito e admiração.
Poder-se-á questionar, e muitos o
fizeram, a razão de Miguel Torga ter utilizado o texto bíblico, para escrever
este conto. A resposta poderá estar ligada ao regime político existente na
altura. O livro foi publicado em 1940. Estávamos em pleno Estado Novo.
Governava Salazar. Miguel Torga, tal como Urbano Tavares Rodrigues, Alves
Redol, Natália Correia, Aquilino Ribeiro, Virgílio Ferreira e outros, foi
bastante incomodado pela censura. De acordo com uma rápida pesquisa, verifiquei
que treze obras do autor foram aprendidas e censuradas. Os “Bichos”, bem como “Vindima”,
“Diário”, “Criação”, “Sinfonia”, “Pátria” e “Rua” foram proibidos em Fevereiro
de 1951.
Sabemos que Miguel Torga sempre
foi um cidadão interventor. Deste modo, perante tais proibições e censuras,
haveria que encontrar maneira de intervir, sem pôr em risco a publicação do
livro. Era importante que a mensagem passasse, era importante que o grito de
liberdade fosse “escutado” pelos leitores.
Miguel Torga terá eleito o corvo
Vicente para atingir esse desiderato…É uma resposta possível à questão colocada
anteriormente. No final, quando as ondas já “lambiam as garras do corvo”, e
este se mantinha silencioso mas firme, Deus decidiu pelo fecho das “comportas do
céu”.
Ganhou a liberdade, salvou-se a
obra do criador… O silêncio do corvo falou mais alto.
Janeiro 2018
Fernando Amaral
“VICENTE”
Por vontade de Deus, todos os animais
de várias espécies foram escolhidos para entrarem na arca construída por Noé.
Vicente, o corvo, foi o último a entrar. Durante quarenta dias, o dilúvio que
se abateu sobre a terra mantinha em segurança as vidas que Deus destinou salvar.
Forçada ou não, havia entre eles uma certa harmonia.
Todos suportavam aquela confusão sem
contestar a vontade do Criador.
Todos, menos Vicente. Embora fosse bem
tratado por Noé, o seu semblante continuava tão carrancudo como no primeiro
dia. Falava sim, mas consigo próprio. “ Mas que fiz eu para estar aqui preso”?-
perguntava-se amiúde, arrependido do seu instintivo momento de obediência. Quis
Deus impedir-lhe a fuga, mas era tão grande a revolta à mistura com o desejo de
liberdade, que abriu as asas e fugiu. Perplexos, os outros animais assistiram
àquele acto de desobediência à vontade Divina, invejando-lhe talvez a coragem:
uma revolta contra quem aprisiona e o motivo pelo qual o faz, escolhendo uns,
deixando de fora outros. De repente, a voz forte de Deus, como se fosse “um
trovão”, fez-se ouvir perguntando: - “ Noé, onde está o meu servo Vicente?”
Fez-se silêncio. Disfarçando o temor, Noé perguntava se o não teriam visto…
Apiedado daquela temerosa servidão, alguém disse simplesmente:
- “Fugiu.” Certo de que o Senhor não
perdoaria aquela falta, Noé perdeu a consciência e caiu inanimado. E quando
admoestado por Deus, como todos os seres frágeis e servis (Noé tinha 600 anos),
chorou com uma criança apanhada em falta! Qual seria o destino de Vicente, como
iria Deus castigar esta rebelião? Perguntas que todos se faziam, mas para as
quais não havia respostas. De repente, “Terra “ - gritou o lince! Era apenas um
pequeno morro que emergia das águas turbulentas. Mesmo assim, a esperança
percorreu o tombadilho. No cume, Vicente via as ondas lamberem aquele pedaço de
terra que aos poucos desaparecia sob as suas garras. Ele desafiava a fúria
Divina, mantendo-se firme naquela exígua nesga de terra. Quem ganharia aquela
luta desigual? Deus, a força suprema, ou a frágil mas determinada ave? Para não
pôr em causa toda a sua obra criativa ou por compaixão pela determinada vontade
de um dos seres por si criados, o Criador cedeu. A chuva parou e o corvo
Vicente voou no gozo da sua conquistada liberdade.
Elita Guerreiro 1/2/2018
«V I C E N T E»
O conto “Vicente”, de Miguel Torga, é um Hino à Vida e à Liberdade.
Vida e Liberdade que são indissolúveis.
Vicente é o corvo que não se conforma com a sua existência rotineira e degradante, num barco em que não há lugar para sonhos ou quaisquer ideais e em que a única segurança que o detém é a comida certa, fornecida a tempo.
Também ali, no barco que vogava indeciso ao sabor das ondas e do vento, ninguém o maltratava ou ofendia. Mas era uma paz amorfa, apodrecida e a alma de Vicente ansiava por mais, tinha sede de Infinito, de Luz, de Vida, de Liberdade.
Não suportava uma existência assim parada, submetida a normas estabelecidas, sem respeito pela vontade e dignidade de cada um.
Aliás, todos os seus companheiros da Arca, que Noé dirigia, reprimiam esse sentimento de busca da Liberdade.
Não tinham coragem e, principalmente, não tinham Fé.
Deus é apresentado como um tirano implacável, que comandava o ímpeto dos elementos.
Um deus injusto que assim encarcerava os pobres bichos, que formavam uma sociedade oprimida, sem terem qualquer culpa dos erros cometidos pelos homens.
Vicente não podia aceitar passivamente esta situação. A sua alma revoltava-se contra esta visão deformada de Deus, Criador da Vida, Deus que é a própria Vida e a verdadeira Liberdade.
Vicente decidiu levantar voo, fugir, sem pensar mais nas consequências daquela opção.
Não queria mais viver acorrentado, agir condicionado, caminhar arrastado.
Ele sentia-se um ser único, irrepetível e, no mais profundo da sua alma, havia repulsa por aquela deformação da ideia de Deus e da repressão e medo que os mantinha a todos oprimidos.
Antes morrer do que existir assim sepultado vivo.
E Deus quis salvar a Sua Criação.
E a Vida triunfou renascida por uma Liberdade invencível e a Força transcendente do Amor.
30.1.2018
ARARAT
…E
se a lenda da pomba branca que volta à Arca de Noé com um raminho de oliveira no bico estivesse
errada ?...
Miguel
Torga conta-nos uma história diametralmente oposta.
Em
vez de uma pombinha alva que vai procurar terra, ele traz-nos um conto, por
certo também encantador, que vê um corvo negro partir. Não para procurar o fim
da odisseia da Arca, mas para fugir ao constrangimento daquela viagem que
parece sem fim e da qual ele, corvo, já está mais que farto !
Conta-nos
ainda que Noé, guardião obediente e temente a Deus, primeiro intrigado, se
aflige ao aperceber-se que Vicente, de facto, desapareceu. Faz um inquérito
junto dos outros animais que confirmam a sua suspeita de que o corvo bateu asa
e se foi simplesmente embora, sob os olhos espantados do resto da fauna que não
piou, nem mugiu, nem rugiu, nem barriu… Todos, talvez invejosos de tanta
ousadia, ficaram a vê-lo desaparecer no infinito, “petrificados perante o gesto de libertação universal” que não
passou pela cabeça de mais nenhum deles
Noé,
desesperado, receia acima de tudo e já
espera a reacção de Deus que, omnipotente, tudo vê e tudo sabe.
Não
tarda então a ecoar nas nuvens carregadas
de chuva a Sua voz tonitruante que pede contas a Noé e este, cada vez mais
enleado, finge não saber, pergunta a torto e a direito “onde está o Vicente” mente descaradamente a Deus dizendo “deve andar por aí” gritando “Vicente, Vicente, onde estás” até que,
por fim, tem que dar a mão à palmatória e confessar que o corvo se evadiu da
Arca!
Entretanto,
a Arca continuou o seu caminho navegante, levada pelos ventos e marés até aí
sem rumo definido…
É
então que ao longe se distingue uma sombra, só um pouco mais negra que o
negrume daqueles dias sem sol : “terra” gritam
uns, “o Vicente” gritam outros…
E,
no longínquo cimo de Ararat, lá está o pássaro negro, dominando tudo e não
receando nada, enquanto a maré continua a encher e a diminuir o espaço em que
poisa.
Uma
ânsia se apodera dos passageiros da Arca que presenciam com terror estes acontecimentos,
pensando para com os seus botões que Vicente será tragado pelas águas que
continuam a subir inexoravelmente e já lhe molham as patinhas.
Mas é então que Deus, magnânimo – ou
“realista”, pois aquele bicho tem uma vontade férrea e nada o demoverá da sua
resolução - pára o castigo, acaba com o Dilúvio Universal e, como diz Torga
numa imagem poética, “fecha as comportas
do céu” e salva a sua criatura, Vicente o corvo negro e luzidio, assim lhe
reconhecendo o direito à própria liberdade…
M.F.
27.1.18
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