segunda-feira, 21 de março de 2022

Inédito, por Elita Guerreiro

 OS RATINHOS E A AÇORDA SEM OVO (RETRATOS DO ALENTEJO)

 Na lareira, crepitava um lumezinho brando. A lenha era pouca e as labaredas em tom azulado chiavam baixinho! Chiavam elas e a cafeteira de barro,” a checolateira”, onde a água fervia para a açorda.

Duas crianças estavam ali por perto. O mais velhinho corria montado num cabo de vassoura, ” o seu cavalo”… O mais novo era ainda um bebé. Um bocado de cortiça servia-lhe de berço, onde dormia tranquilamente. Enquanto o irmão se perdia, sabe Deus por que caminhos no “seu alazão“,  O Pai tinha chegado, sem que a criança desse por isso e ficou à porta  olhando para os filhos tristemente! Saíra de manhã cedo, na esperança de arranjar trabalho, mas como em tantos  outros dias, voltou para casa sem trabalho e sem esperança.

- Ó Pai!- disse o rapazinho, ao dar pela sua presença, correndo para ele. Apertou-o com força contra o peito, enquanto uma lágrima teimosa caía sobre a pequena mão da criança.

- Estás cansado, Pai? Estás a suar!

Vinda do quintal, a Mãe olhava-os comovida!”

- E atão, home, nada?

- Nada, moça… Isto vai de mal a pior!

- São os” ratinhos,” não são, Pai?

 Os “ratinhos”  eram os trabalhadores, fugidos da fome , que assolava as zonas onde viviam, como alíás assolava todo o País! Como se contentavam com a pequena jorna, que os lavradores lhes pagavam, quando  chegava a hora de contratar pessoal , eram eles os escolhidos. O pessoal da terra já não sabia como sustentar as suas famílias! Estava-se entre os anos 40 e 50. A sombra da grande guerra e a guerra de Espanha pairavam sobre o Alentejo profundo, onde os recursos eram nulos. Aquelas crianças não entendiam de guerras, de faltas de trabalho e afins. Nos Pais, a revolta era de todos os dias! O pouco dinheiro que entrava naquela casa era resultado do trabalho da Mãe que, uns dias por outros, passava a ferro em casa das senhoras mais abastadas, “das Donas,” como lhes chamavam! Ela não era Dona, nem Senhora. Era a Maria, do António da Cerca. Dois filhos para criar e umas mãos habilidosas, que deitavam mão a tudo para que os filhos não passassem fome.

- Olha, Maria, combinei com o Jaquim da Rosa e amanhã cedo vamos feitos Maltezes, por esses Montes mais longe…pode ser que “trágamos” alguma coisa para casa!

- Vê o que fazes, home de Deus! Prefiro morrer de fome, mai los moços pequenos, do que ter complicações!

 Abraçou- a com força, dizendo:

- Atão não confias no teu home, minha Maria? Eu vou procurar onde ganhe algum dinheiro, trabalhando. Só  quero criar os nossos filhos em paz, sem fome.

A Mãe foi preparar a açorda. Numa tigela de barro, deitou um pouquinho de azeite, umas gotas de vinagre e os coentros que tinha ido buscar ao quintal. Cortou o pão em fatias muito finas e cobriu tudo com a água que fervia na lareira.

- Mãe, e o ovo? Esqueceste-te do ovo!

- Não. Não esqueci. A galinha pedrez anda cansada e hoje não há ovo para ninguém. Come, anda! Amanhã, ela põe um ovinho só para ti!

 

Elita Guerreiro 28 /1/2022

Sem comentários: