NERO
Bicho perdigueiro, um caçador emérito, beleza de animal que foi, está no fim da vida.
Está triste de dizer adeus, de se despedir das charnecas onde farejava perdizes, dos prados verdejantes onde corria desalmado atrás das lebres fugidias e dos coelhos marotos, dos troncos seculares onde orgulhosamente marcava a sua passagem.
Triste de não rever o seu filhote, o Jau, que teve um destino tão infeliz lá para os lados de Jurjais…
E triste por ter de deixar os bichos humanos a quem foi tão fiel: os dois velhos que lhe deram guarida quando ainda menino chegou àquela casa, a menina que o recebeu nos braços com tanta ternura – lembra-se de tudo como se fosse ontem – e o dono, ah o dono, que vem tão raramente e lhe deixa tantas saudades.
Mas tudo isso que importa agora? Já nem forças tem para erguer a cabeça ou mexer a pata; está para ali, à espera.
Sim, só à espera de um sinal de reconhecimento, ou de amor, de um amor que corresponda ao seu, tão grande como aquele coração que ainda teima em bater ali dentro das costelas, quando todo o resto já deixou de funcionar...
E, de facto, adormece enfim, feliz ao ver por entre as pálpebras que já lhe pesam tanto, uma lágrima correr pelo rosto lindo da terna patroa nova.
Abandona-se então docemente e entra na barca de Caronte…
Mercedes Ferrari
Era uma vez um cãozinho perdigueiro que, aos dois meses de idade, foi retirado da doce companhia da mãe para ser adoptado por uma família composta por pai, mãe, um filho e uma filha.
Na realidade, o seu verdadeiro dono era o filho, um doutor, que estava quase sempre ausente e só vinha a casa pelo Natal.
Puseram-lhe o nome de Nero.
O dono de Nero queria-o para o acompanhar à caça às perdizes. Depois de o treinar durante algum tempo, que foi de grande sofrimento para o animal (porque o dono não era terno e carinhoso como a jovem sua irmã), Nero tornou-se um excelente caçador.
Foram tempos felizes para ele, embora tivesse passado pela desgraça de ter sido atingido por um tiro na cabeça, que um outro caçador inábil involuntariamente disparou e o deixou quase morto.
Recuperou desse mal e a sua vida decorria feliz, com a ternura da patroa nova e alguns raros carinhos dos velhos, seus pais.
Tinha amigos, outros cães, frangos, galinhas e outros animais domésticos. Também não lhe faltava comida, como sucedia com o seu filho, o Jau, que tinha sido dado a outro dono.
Decorreram anos. Nero envelheceu, perdeu as forças, não se aguentava de pé e sentia a tristeza da solidão e a certeza de que não iria deixar saudades.
Porém, no dia em que se sentiu pior e percebeu que ia morrer, teve a consolação de ver a patroa nova chegar junto dele debulhada em lágrimas.
Morreu feliz por ver que, afinal, sempre havia alguém que lhe tinha amor.
13.10.2017
Leonor Marques
RETROSPECTIVA DE VIDA
No
conto de Miguel Torga, a que deu o nome de «Nero», o cão passa fielmente o
desenrolar de sua estadia na casa, até deixá-la…
Constatou
que humanos e animais são diferentes na vida e na morte. Também diferentes as
formas como são ou não enterrados. Para si, haveria apenas uma cova no local dedicado
a cães e gatos da casa, próximo da cozinha, debaixo da figueira dos gulosos
«figos lampos» que a «velhota» ia comer. Não era muito amigo dela, embora dela
recebesse um pouco de «broa». Gostava era de sua filha que o acarinhava, como
se criança fosse, aninhando-o ao colo, ainda bem pequeno.
Nos
anos vindouros, permitiria que estivesse aos seus pés junto à lareira.
Esporadicamente o velho colocava-lhe a grande mão na cabeça, com meiguice. Oito
anos serenos em família. Quando chegou o dono novo, nutriu por ele estima
cerimoniosa, diferente do aconchego que sentia com o velho, a velha e a dona nova.
Era
assim desde que com dois meses, chegara ainda não batizado. Com as festinhas da
jovem, sopas de café e caldos, quase esquecera a teta da mãe e os turbulentos
irmãos .
Ao
ouvir chamar por si: «Nero», não entendia, mas como o som vinha acompanhado de
toicinho ou caldo, concluíra que era o seu nome. Novo, de olhos brilhantes, num
dia frio, o patrão chegou na companhia da patroinha. Habituara-se a segui-la
sempre. Com o velho nem tanto e com a velhota só se ela fosse mondar próximo do
lugar onde vivia o seu «amigo fadista». Quanto se divertiam na eira! Com a mais
nova até ia à missa e escutava atenciosamente sermões, que a sua condição não
entendia.
Começou
outra vida, o recém-chegado chamava por si. Ignorava-o, mas quando a voz
chamava alto, percebeu que havia que obedecer.
Um
choque, quando foi batido pela primeira vez. Quebrara o ovo que fora ensinado a
trazer intacto. A chamada de atenção foi dura sobre as orelhas. Achou injusto
mas levantou-se. Nos montes de «Pioledo» ouviu um estrondo aterrador.
Esbaforido, fugiu, embatendo numa giesta. Contrafeito pegou no pássaro morto.
Foi o inicio, como se enamoramento… como se adolescente pacientemente esperando
pela sua apaixonada, ele esperava caçar as suas presas...
Se
outros as disputassem havia luta, da qual não saía perdedor. Dono de grande
auto estima. Pudera! Se até lhe tinham dado nome de um “imperador”…
Quando
um de seus amigos morreu desejou ter morrido no seu lugar. Era novo, deixaria
saudade.
Não
como agora, que todos esperavam que partisse.
Além
de não deixar saudades, gostaria de ter ali o seu filho que o visitara só uma
vez.
Pensou
em quantos viveram momentos idênticos àquele por que passava e a quem não tinha
dado atenção. A cabeça doía-lhe e o peito também!... O corpo amoleceu!
Vislumbrou a patroa nova, que estava em silêncio e chorava. Olhou-a pela fresta
do olhar. A lua esmerou-se iluminando a casa, os montes lembraram o seu «andar
seguro»: o galo dedicou-lhe o último concerto que escutaria. Antes de se esvair
da sua mente, o filho sorriu-lhe. As cortinas do seu olhar cerraram-se,
adormeceu serenamente, depois de ter feito a sua retrospectiva de vida.
Nota:
Se
um dia, tal como «Nero», tiver tempo de fazer retrospectiva de vida, gostaria
de ter a cabeça apoiada em cima de um livro, de ficar perto de um esteval onde
as flores das estevas se transformassem em branco sincelo… ter vestido um fato
cor do manto da Virgem… ao pescoço colares de pérolas brilhantes e branquinhas,
feitos com o sorriso dos meus netos… que uma gaivota sobrevoasse o céu e um
coro cantasse “ao entardecer desta vida”… se eu fizer dela a retrospetiva…
Nero pressentiu que a sua vida
estava próxima do fim. A dureza dessa realidade ocupou o seu pensamento,
durante algum tempo, até ao último suspiro. Antes já se havia despedido dos amigos.
Desejava um funeral digno, embora, para ele, fosse claro que não podia sonhar
com cerimónia rica. Afinal, conhecia bem a forma desleixada como muitos dos
seus amigos haviam partido. Depois, recordou a forma como entrara na família de
acolhimento e o modo como todos os seus membros, cada um à sua maneira, o
acarinharam. Nero continuou a visualizar o filme da sua existência e deparou
com passagens marcantes, tais como:
Ø O
modo como cada um dos membros, da família de acolhimento, o recebeu e integrou.
Ø A
preocupação da nova família, nomeadamente da patroa nova, em dar-lhe um nome que
o diferenciasse dos demais.
Ø As
relações havidas, ao longo de anos, com muitos dos seus diferentes amigos.
Ø A
forma como ocorreu o primeiro encontro com o patrão novo (nessa altura já
habitava a casa de família há algum tempo).
Ø O
período de preparação para a caça à perdiz, sob orientação do patrão novo, que lhe
conferiu competências especiais naquela área.
Ø As
muitas jornadas de caça que viveu, acompanhando sempre o seu patrão novo,
autênticas aventuras que, neste momento, não podia esquecer.
Ø Ao
pensar na sua sucessão, veio-lhe à cabeça Jau, seu filho. Seria, sem dúvida, o seu
preferido para o substituir. Porém, essa solução já não era viável. Jau não demonstrara
habilidades bastantes como caçador. Por isso o patrão novo há muito o havia
cedido a outra família de outra povoação.
Enfim, toda uma vida agora
recordada num pequeno lapso de tempo. Entretanto, Nero percebeu que a patroa
estava na cozinha donde vinha um cheirinho agora incapaz de o levantar.
Finalmente, morreu satisfeito e feliz.
Afinal, no último momento de lucidez, conseguiu ver a patroa nova, que entretanto se havia abeirado
dele, chorar pela sua partida.
Fernando Amaral, Novembro de 2017
“NERO “
Nero
era um cão, que em bébé foi adoptado por uma família (Pai e Mãe; Filho e
Filha).
Era
de raça pura, um “perdigueiro navarro”, que o jovem dono desde cedo começou a
treinar para caçar. Nunca houve uma afinidade entre os dois, porque ele só
vinha a casa de férias, era doutor, e estava longe.
Nem
as tretas do Fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caçadas de menos risco.
Era
um cão, que se respeitava a si próprio, que tinha dignidade. Borgas assim eram
coisas de rafeiros, que acabavam sempre mal e ele afastava-se dessas confusões.
Acabou
por ser pai de um cachorro, o Jau. Que alegria teve quando o viu pela primeira
vez! Até reparou, que parecia uma estátua: teso, esticado e o rabo que parecia uma
seta…
Mais
tarde, bem que o poderia vir a substituir, mas quê!? Tinha um feitio desditoso,
saía à mãe. Tinha mau nariz e uma certa impaciência: não se aguentaria na caça.
Durante
os seus oito anos de vida naquela casa, Nero teve os seus tempos de ócio, de
bons e maus momentos, teve também afectos, amores e desamores, com todos
aqueles que foram seus amigos e companheiros de brincadeiras, de desatinos, de
aventuras, e de algumas travessuras.
Agora
tinha chegado a sua hora!
Pensava:
- Se tivesse ali o filho junto a ele…Sempre era uma pessoa de família, que
estava a seu lado!...
De
repente, pela sua mente passaram a correr as imagens daqueles oito anos. Nero também
se lembrou dos que já tinham partido, e muitos deles com uma certa pompa e
circunstância… eram ricos e pobres… ele
estava destinado a ficar debaixo da figueira antiga, que existia no quintal…
ela estaria pronta a recebê-lo para sempre.
É
certo que ele vira morrer o gato, um número grande de frangos e galinhas, e
cada ano o seu porco, sem ter o mais pequeno estremecimento.
Recordou
com muita felicidade o dia em que chegou à sua nova morada e a jovem dona o
recebeu com festas no lombo, leite, sopas de café e lhe deu nome… de tal forma
estava contente, que ia esquecendo a teta doce em que mamara juntamente com os
seus dois irmãos birrentos.
Mas,
desta vez, o caso mudava de figura. Finava-se um cão de caça, um navarro
original! Ingratidões… Mesmo sendo perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à
raposa e à doninha, quando na capoeira havia grande agitação? Ele. Ele, Nero,
agora velho e muito doente, que nem conseguia mexer-se, e nem levantar a cabeça,
o corpo mole e sem acção, desdentado, cego duma vista… Devagar, lá conseguiu
deitar-se e ficar à espera.
O
que ele tinha sido na sua juventude!... Ágil, jeitoso e até mesmo toleirão… Os
enganos do Mundo!...
Afinal
considerava-se propriedade dos três: da filha e dos velhotes. Fora com eles que
passara longos Invernos, Outonos e Primaveras, numa paz de uma família unida, com
a velhota que tinha um feitio afável e o velhote com a sua mão calejada que, de
vez em quando, lhe fazia festas na cabeça. Mas de quem ele verdadeiramente
gostava era da sua jovem dona, que o punha junto ao lume e aos pés de quem ele se
enroscava.
Naquele
momento, pressentiu a chegada dela, que vinha vigiá-lo de vez em quando…Fechou
os olhos. Sempre gostaria de ouvir o que diria, quando o visse como morto…Ela
ficou em silêncio!
Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a
cara. Chorava. Fechou novamente as pálpebras… feliz.
E
à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes lá longe
pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas, o cheiro da última
perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que
vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou os olhos e
morreu.
Este
conto pode considerar-se uma Metáfora. Ao longo da vida de um cão, temos a
visão de como pode ser feliz um ser humano. Uma vida discreta e simples – como
a deste animal tão humanizado, a vontade que qualquer Ser
(humano ou não) tem de deixar uma marca neste mundo e a necessidade de sentir que
se foi amado.
Azeitão,
05-11-2017
“OS MEUS
BICHOS”
Velho e doente, tem visto desaparecer
outros que, como ele, envelheceram e morreram. O velho Júnior,
que foi um cão forte, alegre e feliz, está connosco há
16 anos e faz parte desta família. Passa os dias a dormir
na nova casa que o dono construiu para ele, perto da churrasqueira e do parque das donas, pequeninas que tem visto crescer.
Já nem o incomoda o grasnar da sua vizinha, a gança Leopoldina,
velha como ele. Viviam ao fundo
do quintal, mas como estão ambos velhos e necessitam de cuidados, estão agora
mais perto dos donos. O Júnior já não vai à clínica veterinária, mas a Doutora
Graça vem
consultá-lo, vaciná-lo e prescrever
receitas. E o melhor de tudo, dar-lhe mimos. Nesta última etapa da vida,
tem todo o tempo para recordar o seu passado de correrias loucas com o Duque,
que também já partiu e com quem partilhou longos anos das suas vidas. Sou feliz,
pensa.
Vi crescer os
meus donos mais novos, vi-os formar as suas novas famílias e trazerem depois as
minhas pequeninas bebés
que me adoram.
Gosto de as ver brincar, de estar junto delas,
sentir as suas
pequeninas mãos na minha cabeça. Mas sou muitas vezes traído pelos meus
desequilíbrios. E lá vem a minha velha dona em auxílio das Bisnetas. “Júnior,
cuidado, não faças cair
as meninas! Finjo que não ouço. Afinal estou surdo e ela
também. O que ainda me incomoda um pouco é a traquinice destes três pirralhos que não param
de correr e ladrar todo o dia. Especialmente este bebezão, que
se juntou ultimamente aos
dois que já cá estavam. São “ o trio eléctrico.”
Quando o
pequenote vem junto à minha casa, embora já me faltem as
forças, ainda o tento por na ordem. “Vá, aproveita agora, quando as pilhas
deixarem de funcionar, talvez venhas ocupar este espaço que foi meu! “Tretas,
nem me escuta o malandro! É o Mambo.
Belo nome para este doido!
O Miró está
mais sossegado. Gosto de ver o amor que brilha nos seus olhos, quando a dona o
acarinha. E há ainda a serigaita da Puka, uma flausina de pelo negro como a
noite e olhos lânguidos, que só quer festas. Ciúmes, dirão. Confesso que sim, embora
sejamos todos tratados com muito carinho. Mas eles são
tão pequenos! Mesmo à medida dos bracinhos das minhas meninas. E eu sou grande,
desajeitado e velho. Ainda vou todas as manhãs dar os bons dias à minha velha
dona e pedir-lhe o pequeno-almoço. Quando não apareço, ela procura-me por todo
o quintal. Algum dia não apareço. E quando a minha dona me vier buscar para me
dar os medicamentos, já tenho passado para o outro lado, seja ele lá onde for. “ Vou
levar saudades tuas, Lufe!", o belo cão do meu dono mais novo. O Lufe tem
problemas de mobilidade, arrasta as patas traseiras quando dolorosamente se
quer levantar. Passa a vida deitado como eu. Ainda é tão novo, coitado! Digo adeus
a esta família um dia destes, levo-os a todos no coração e sofro porque sei que
vão chorar por mim e não queria que
sofressem. Dirão às minhas donas pequeninas o mesmo que disseram quando o Duque
partiu: “Foi para o céu”. Elas nunca saberão que o nosso céu é debaixo de uma
das muitas laranjeiras do quintal, onde o meu dono piedosamente guarda os
nossos corpos.
Elita Guerreiro
1 /11/2017
Nero
Nero:- Era um navarro
legítimo. Já cansado pela idade, mas consciente, esperava o seu fim.
Partiria feliz, por saber que teria direito a uma sepultura num
lugar de honra, junto à figueira, bem perto de quem sempre o respeitara e
fizara dele uma pessoa de família. Nisso, sabia fazer a destrinça entre quem
mais o estimara.
Durante o seu tempo de vida, conheceu bem o que era a morte, por
terem sido muitos os que o antecederam: soube o que era perder amigos.
Restava-lhe avivar sentimentos de gratidão pela vida que tivera.
Sentiu saudades do seu Jau, um filho de quem gostava e do
caçador que fora, de ser o guarda da casa, das muitas amizades que conquistara.
Fernando Sousa
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