quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Para uma análise do conto "Nero", in Bichos, Miguel Torga



NERO

Bicho perdigueiro, um caçador emérito, beleza de animal que foi, está no fim da vida.

Está triste de dizer adeus, de se despedir das charnecas onde farejava perdizes, dos prados verdejantes onde corria desalmado atrás das lebres fugidias e dos coelhos marotos, dos troncos seculares onde orgulhosamente marcava a sua passagem.

Triste de não rever o seu filhote, o Jau, que teve um destino tão infeliz lá para os lados de Jurjais…

E triste por ter de deixar os bichos humanos a quem foi tão fiel: os dois velhos que lhe deram guarida quando ainda menino chegou àquela casa, a menina que o recebeu nos braços com tanta ternura – lembra-se de tudo como se fosse ontem – e o dono, ah o dono, que vem tão raramente e lhe deixa tantas saudades.

Mas tudo isso que importa agora? Já nem forças tem para erguer a cabeça ou mexer a pata; está para ali, à espera.

Sim, só à espera de um sinal de reconhecimento, ou de amor, de um amor que corresponda ao seu, tão grande como aquele coração que ainda teima em bater ali dentro das costelas, quando todo o resto já deixou de funcionar...

E, de facto, adormece enfim, feliz ao ver por entre as pálpebras que já lhe pesam tanto, uma lágrima correr pelo rosto lindo da terna patroa nova.


Abandona-se então docemente e entra na barca de Caronte…

Mercedes Ferrari



N E R O      

Era uma vez um cãozinho perdigueiro que, aos dois meses de idade, foi retirado da doce companhia da  mãe para ser adoptado por uma família composta por pai, mãe, um filho e uma filha.
Na realidade, o seu verdadeiro dono era o filho, um doutor, que estava quase sempre ausente e só vinha a casa pelo Natal.
Puseram-lhe o nome de Nero.
O dono de Nero queria-o para o acompanhar à caça às perdizes. Depois de o treinar durante algum tempo, que foi de grande sofrimento para o animal (porque o dono não era terno e carinhoso como a jovem sua irmã), Nero tornou-se um excelente caçador.
Foram tempos felizes para ele, embora tivesse passado pela desgraça de ter sido atingido por um tiro na cabeça, que um outro caçador inábil involuntariamente disparou e o deixou quase morto.
Recuperou desse mal e a sua vida decorria feliz, com a ternura da patroa nova e alguns raros carinhos dos velhos, seus pais.
Tinha amigos, outros cães, frangos, galinhas e outros animais domésticos. Também não lhe faltava comida, como sucedia com o seu filho, o Jau, que tinha sido dado a outro dono.
Decorreram anos. Nero envelheceu, perdeu as forças, não se aguentava de pé e sentia a tristeza da solidão e a certeza de que não iria deixar saudades.
Porém, no dia em que se sentiu pior e percebeu que ia morrer, teve a consolação de ver a patroa nova chegar junto dele debulhada em lágrimas.
Morreu feliz por ver que, afinal, sempre havia alguém que lhe tinha amor.

13.10.2017
Leonor Marques

RETROSPECTIVA DE VIDA

No conto de Miguel Torga, a que deu o nome de «Nero», o cão passa fielmente o desenrolar de sua estadia na casa, até deixá-la…
Constatou que humanos e animais são diferentes na vida e na morte. Também diferentes as formas como são ou não enterrados. Para si, haveria apenas uma cova no local dedicado a cães e gatos da casa, próximo da cozinha, debaixo da figueira dos gulosos «figos lampos» que a «velhota» ia comer. Não era muito amigo dela, embora dela recebesse um pouco de «broa». Gostava era de sua filha que o acarinhava, como se criança fosse, aninhando-o ao colo, ainda bem pequeno.
Nos anos vindouros, permitiria que estivesse aos seus pés junto à lareira. Esporadicamente o velho colocava-lhe a grande mão na cabeça, com meiguice. Oito anos serenos em família. Quando chegou o dono novo, nutriu por ele estima cerimoniosa, diferente do aconchego que sentia com o velho, a velha e a dona nova.
Era assim desde que com dois meses, chegara ainda não batizado. Com as festinhas da jovem, sopas de café e caldos, quase esquecera a teta da mãe e os turbulentos irmãos .
Ao ouvir chamar por si: «Nero», não entendia, mas como o som vinha acompanhado de toicinho ou caldo, concluíra que era o seu nome. Novo, de olhos brilhantes, num dia frio, o patrão chegou na companhia da patroinha. Habituara-se a segui-la sempre. Com o velho nem tanto e com a velhota só se ela fosse mondar próximo do lugar onde vivia o seu «amigo fadista». Quanto se divertiam na eira! Com a mais nova até ia à missa e escutava atenciosamente sermões, que a sua condição não entendia.
Começou outra vida, o recém-chegado chamava por si. Ignorava-o, mas quando a voz chamava alto, percebeu que havia que obedecer.
Um choque, quando foi batido pela primeira vez. Quebrara o ovo que fora ensinado a trazer intacto. A chamada de atenção foi dura sobre as orelhas. Achou injusto mas levantou-se. Nos montes de «Pioledo» ouviu um estrondo aterrador. Esbaforido, fugiu, embatendo numa giesta. Contrafeito pegou no pássaro morto. Foi o inicio, como se enamoramento… como se adolescente pacientemente esperando pela sua apaixonada, ele esperava caçar as suas presas...
Se outros as disputassem havia luta, da qual não saía perdedor. Dono de grande auto estima. Pudera! Se até lhe tinham dado nome de um “imperador”…
Quando um de seus amigos morreu desejou ter morrido no seu lugar. Era novo, deixaria saudade.
Não como agora, que todos esperavam que partisse.
Além de não deixar saudades, gostaria de ter ali o seu filho que o visitara só uma vez.
Pensou em quantos viveram momentos idênticos àquele por que passava e a quem não tinha dado atenção. A cabeça doía-lhe e o peito também!... O corpo amoleceu! Vislumbrou a patroa nova, que estava em silêncio e chorava. Olhou-a pela fresta do olhar. A lua esmerou-se iluminando a casa, os montes lembraram o seu «andar seguro»: o galo dedicou-lhe o último concerto que escutaria. Antes de se esvair da sua mente, o filho sorriu-lhe. As cortinas do seu olhar cerraram-se, adormeceu serenamente, depois de ter feito a sua retrospectiva de vida.

Nota:
Se um dia, tal como «Nero», tiver tempo de fazer retrospectiva de vida, gostaria de ter a cabeça apoiada em cima de um livro, de ficar perto de um esteval onde as flores das estevas se transformassem em branco sincelo… ter vestido um fato cor do manto da Virgem… ao pescoço colares de pérolas brilhantes e branquinhas, feitos com o sorriso dos meus netos… que uma gaivota sobrevoasse o céu e um coro cantasse “ao entardecer desta vida”… se eu fizer dela a retrospetiva…

 Adalberta Marques

Nero, Os Bichos (Resumo/Introdução possível)

Nero pressentiu que a sua vida estava próxima do fim. A dureza dessa realidade ocupou o seu pensamento, durante algum tempo, até ao último suspiro. Antes já se havia despedido dos amigos. Desejava um funeral digno, embora, para ele, fosse claro que não podia sonhar com cerimónia rica. Afinal, conhecia bem a forma desleixada como muitos dos seus amigos haviam partido. Depois, recordou a forma como entrara na família de acolhimento e o modo como todos os seus membros, cada um à sua maneira, o acarinharam. Nero continuou a visualizar o filme da sua existência e deparou com passagens marcantes, tais como:
Ø  O modo como cada um dos membros, da família de acolhimento, o recebeu e integrou.
Ø  A preocupação da nova família, nomeadamente da patroa nova, em dar-lhe um nome que o diferenciasse dos demais.
Ø  As relações havidas, ao longo de anos, com muitos dos seus diferentes amigos.
Ø  A forma como ocorreu o primeiro encontro com o patrão novo (nessa altura já habitava a casa de família há algum tempo).
Ø  O período de preparação para a caça à perdiz, sob orientação do patrão novo, que lhe conferiu competências especiais naquela área.
Ø  As muitas jornadas de caça que viveu, acompanhando sempre o seu patrão novo, autênticas aventuras que, neste momento, não podia esquecer.
Ø  Ao pensar na sua sucessão, veio-lhe à cabeça Jau, seu filho. Seria, sem dúvida, o seu preferido para o substituir. Porém, essa solução já não era viável. Jau não demonstrara habilidades bastantes como caçador. Por isso o patrão novo há muito o havia cedido a outra família de outra povoação.
Enfim, toda uma vida agora recordada num pequeno lapso de tempo. Entretanto, Nero percebeu que a patroa estava na cozinha donde vinha um cheirinho agora incapaz de o levantar.
Finalmente, morreu satisfeito e feliz. Afinal, no último momento de lucidez, conseguiu ver a  patroa nova, que entretanto se havia abeirado dele, chorar pela sua partida.

  
Fernando Amaral, Novembro de 2017
 “NERO “

Nero era um cão, que em bébé foi adoptado por uma família (Pai e Mãe; Filho e Filha).
Era de raça pura, um “perdigueiro navarro”, que o jovem dono desde cedo começou a treinar para caçar. Nunca houve uma afinidade entre os dois, porque ele só vinha a casa de férias, era doutor, e estava longe.

Nem as tretas do Fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caçadas de menos risco.
Era um cão, que se respeitava a si próprio, que tinha dignidade. Borgas assim eram coisas de rafeiros, que acabavam sempre mal e ele afastava-se dessas confusões.

Acabou por ser pai de um cachorro, o Jau. Que alegria teve quando o viu pela primeira vez! Até reparou, que parecia uma estátua: teso, esticado e o rabo que parecia uma seta…
Mais tarde, bem que o poderia vir a substituir, mas quê!? Tinha um feitio desditoso, saía à mãe. Tinha mau nariz e uma certa impaciência: não se aguentaria na caça.

Durante os seus oito anos de vida naquela casa, Nero teve os seus tempos de ócio, de bons e maus momentos, teve também afectos, amores e desamores, com todos aqueles que foram seus amigos e companheiros de brincadeiras, de desatinos, de aventuras, e de algumas travessuras.

Agora tinha chegado a sua hora!
Pensava: - Se tivesse ali o filho junto a ele…Sempre era uma pessoa de família, que estava a seu lado!...

De repente, pela sua mente passaram a correr as imagens daqueles oito anos. Nero também se lembrou dos que já tinham partido, e muitos deles com uma certa pompa e circunstância… eram ricos e pobresele estava destinado a ficar debaixo da figueira antiga, que existia no quintal… ela estaria pronta a recebê-lo para sempre.

É certo que ele vira morrer o gato, um número grande de frangos e galinhas, e cada ano o seu porco, sem ter o mais pequeno estremecimento.

Recordou com muita felicidade o dia em que chegou à sua nova morada e a jovem dona o recebeu com festas no lombo, leite, sopas de café e lhe deu nome… de tal forma estava contente, que ia esquecendo a teta doce em que mamara juntamente com os seus dois irmãos birrentos.

Mas, desta vez, o caso mudava de figura. Finava-se um cão de caça, um navarro original! Ingratidões… Mesmo sendo perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à raposa e à doninha, quando na capoeira havia grande agitação? Ele. Ele, Nero, agora velho e muito doente, que nem conseguia mexer-se, e nem levantar a cabeça, o corpo mole e sem acção, desdentado, cego duma vista… Devagar, lá conseguiu deitar-se e ficar à espera.

O que ele tinha sido na sua juventude!... Ágil, jeitoso e até mesmo toleirão… Os enganos do Mundo!...

Afinal considerava-se propriedade dos três: da filha e dos velhotes. Fora com eles que passara longos Invernos, Outonos e Primaveras, numa paz de uma família unida, com a velhota que tinha um feitio afável e o velhote com a sua mão calejada que, de vez em quando, lhe fazia festas na cabeça. Mas de quem ele verdadeiramente gostava era da sua jovem dona, que o punha junto ao lume e aos pés de quem ele se enroscava.

Naquele momento, pressentiu a chegada dela, que vinha vigiá-lo de vez em quando…Fechou os olhos. Sempre gostaria de ouvir o que diria, quando o visse como morto…Ela ficou em silêncio!
 Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara. Chorava. Fechou novamente as pálpebras… feliz.

E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes lá longe pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas, o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou os olhos e morreu.



Este conto pode considerar-se uma Metáfora. Ao longo da vida de um cão, temos a visão de como pode ser feliz um ser humano. Uma vida discreta e simples – como a deste animal tão humanizado, a vontade que qualquer Ser (humano ou não) tem de deixar uma marca neste mundo e a necessidade de sentir que se foi amado.


Azeitão, 05-11-2017
Carmo Bairrada


“OS MEUS BICHOS”
Velho e doente, tem visto desaparecer outros que, como ele, envelheceram e morreram. O velho Júnior, que foi um cão forte, alegre e feliz, está connosco há 16 anos e faz parte desta família. Passa os dias a dormir na nova casa que o dono construiu para ele, perto da churrasqueira e do parque das donas, pequeninas que tem visto crescer. Já nem o incomoda o grasnar da sua vizinha, a gança Leopoldina, velha como ele. Viviam ao fundo do quintal, mas como estão ambos velhos e necessitam de cuidados, estão agora mais perto dos donos. O Júnior já não vai à clínica veterinária, mas a Doutora Graça vem consultá-lo, vaciná-lo e prescrever  receitas. E o melhor de tudo, dar-lhe mimos. Nesta última etapa da vida, tem todo o tempo para recordar o seu passado de correrias loucas com o Duque, que também já partiu e com quem partilhou longos anos das suas vidas. Sou feliz, pensa.
Vi crescer os meus donos mais novos, vi-os formar as suas novas famílias e trazerem depois as minhas pequeninas bebés
que me adoram. Gosto de as ver brincar, de estar junto delas,
sentir as suas pequeninas mãos na minha cabeça. Mas sou muitas vezes traído pelos meus desequilíbrios. E lá vem a minha velha dona em auxílio das Bisnetas. “Júnior, cuidado, não faças cair as meninas! Finjo que não ouço. Afinal estou surdo e ela também. O que ainda me incomoda um pouco é a traquinice destes três pirralhos que não param de correr e ladrar  todo o dia. Especialmente este bebezão, que se juntou ultimamente aos dois que já cá estavam. São “ o trio eléctrico.”
Quando o pequenote vem junto à minha casa, embora já me faltem as forças, ainda o tento por na ordem. “Vá, aproveita agora, quando as pilhas deixarem de funcionar, talvez venhas ocupar este espaço que foi meu! “Tretas, nem me escuta  o malandro! É o Mambo. Belo nome para este doido!
O Miró está mais sossegado. Gosto de ver o amor que brilha nos seus olhos, quando a dona o acarinha. E há ainda a serigaita da Puka, uma flausina de pelo negro como a noite e olhos lânguidos, que só quer festas. Ciúmes, dirão. Confesso que sim, embora sejamos todos tratados com muito carinho. Mas eles são tão pequenos! Mesmo à medida dos bracinhos das minhas meninas. E eu sou grande, desajeitado e velho. Ainda vou todas as manhãs dar os bons dias à minha velha dona e pedir-lhe o pequeno-almoço. Quando não apareço, ela procura-me por todo o quintal. Algum dia não apareço. E quando a minha dona me vier buscar para me dar os medicamentos, já tenho passado para o outro lado, seja ele lá onde for. “ Vou levar saudades tuas, Lufe!", o belo cão do meu dono mais novo. O Lufe tem problemas de mobilidade, arrasta as patas traseiras quando dolorosamente se quer levantar. Passa a vida deitado como eu. Ainda é tão novo, coitado! Digo adeus a esta família um dia destes, levo-os a todos no coração e sofro porque sei que vão chorar por mim  e não queria que sofressem. Dirão às minhas donas pequeninas o mesmo que disseram quando o Duque partiu: “Foi para o céu”. Elas nunca saberão que o nosso céu é debaixo de uma das muitas laranjeiras do quintal, onde o meu dono piedosamente guarda os nossos corpos.


Elita Guerreiro 1 /11/2017

Nero

Nero:- Era um navarro legítimo. Já cansado pela idade, mas consciente, esperava o seu fim.
Partiria feliz, por saber que teria direito a uma sepultura num lugar de honra, junto à figueira, bem perto de quem sempre o respeitara e fizara dele uma pessoa de família. Nisso, sabia fazer a destrinça entre quem mais o estimara.
Durante o seu tempo de vida, conheceu bem o que era a morte, por terem sido muitos os que o antecederam: soube o que era perder amigos.
Restava-lhe avivar sentimentos de gratidão pela vida que tivera.

Sentiu saudades do seu Jau, um filho de quem gostava e do caçador que fora, de ser o guarda da casa, das muitas amizades que conquistara.

Fernando Sousa






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