1 - Introdução
Sou transmontano e, tal como no caso vertente, sempre que tenho essa oportunidade, tenho orgulho em dizê-lo. O pouco tempo que vivi, na minha terra natal, foi bastante para reter a energia das raízes, a força e a magia das terras além do Marão. Por isso, ao ler Miguel Torga, nomeadamente os “Bichos” e o “Caçador” reconheço, na sua obra, a veia do povo transmontano, as suas expressões genuínas, a sua cultura e a beleza dos seus diálogos. Miguel Torga, também ele transmontano, sabe como ninguém interpretar aquela cultura e escrever, de forma superior, sobre o povo de Trás-os-Montes.
2 – Resposta
A história de Nero descrita por Miguel Torga no seu livro “Os Bichos” fala-nos sobre um cão que, na hora da morte, recorda toda a sua vida de uma forma humanizada. Nero, nas suas recordações dá grande relevo à sua especialidade de cão perdigueiro e à sua atividade de cão de caçador (em apoio ao seu patrão novo). Já no conto o “Caçador”, a personagem principal é um caçador, com idade avançada, que privilegia o contacto com a natureza. Este caçador percorre, diariamente, montes e vales ao encontro de perdizes, coelhos, rolas, lebres e outros animais. Prefere essa atividade, diária, a quedar-se junto à família ou vaguear pela aldeia alimentando conversas vazias ou coscuvilhices sem sentido. A sua personalidade singular, diferenciadora da maioria dos habitantes da aldeia, está bem patente no final do conto onde Tafona trava, utilizando a sua própria arma, Travassos principal coscuvilheiro da aldeia. Travassos preparava-se para interromper um ato de amor entre dois jovens apaixonados que, de acordo com o Tafona, “deveria ocorrer na paz do Senhor”.
Comparando os dois contos, poderemos identificar as seguintes pontos de contacto:
Ø Ambos, Nero e Tafona, são amantes da caça exercendo essa atividade com paixão e respeito pelos próprios bichos que abatem.
Ø Os dois textos mostram-nos um bicho humanizado e um humano próximo dos bichos.
Ø Nero, quando se refere aos amigos, fá-lo com um sentido de respeito e verdade que é comparável aos sentimentos do Tafona para com homens e animais.
Semelhanças entre as personagens Nero e o Caçador
de Miguel Torga.
Ao
ler os dois textos deste autor, para mim desconhecido até ao presente, fico a
conhecer um pouco da filosofia de vida deste escritor de vulto: o seu apego à
natureza e ao meio em que se permitiu inserir, a forma sublime como traduz em
palavras o seu enraizamento telúrico e a maneira como as suas gentes vivem, a
simplicidade do português e o trato fino como o emprega. A sabedoria no uso das
palavras encanta-me.
Em
meu entender, estes dois textos, contos
Caçador e Nero, têm entre outros, estes pontos em comum:
· Constatei
que ambos as personagens, o Tafona e o
Nero, começam por se arrastar de velhice, fazendo o sentido inverso do
viver, sinal de que a vida foi longa e, apesar de tudo, lhes foi sorrindo.
·
Também ambos terminaram “consumidos e
rilhadinhos de vício”, pelos prazeres a que bem cedo se deixaram prender;
porém, nem o tempo lhes adoçou a alma.
·
Na relatividade da vida e da morte para
com os outros seres considerados de menor valia, é notória a indiferença que
ambos nutrem pelo papel de predadores, sentindo até nisso um prazer quase
absoluto.
·
É também comum o prazer da liberdade que
desfrutam, pelos campos e serranias, naquele seu mundo por demais conhecido
pelas vivências e pela sua ação.
·
A mesma paixão pela natureza, que
percorrem de olhos fechados: cada carreiro, cada trilho, contornando cada fraga,
no rasto de qualquer coisa com vida.
· Ambos
são portadores dos cinco sentidos apurados, condição que as exigências da vida
lhes foram refinando, na entrega total à avidez de caçar. Já por si, eram seres
bravios e astutos, com mais estes atributos facilmente podiam identificar ao
menor sinal, mesmo na distância, a aproximação de qualquer possível alvo a
atingir.
Fernando
Sousa
SEMELHANÇA DOS PERCURSOS DE VIDA ENTRE
O CÃO “NERO” de OS BICHOS E O CAÇADOR “TAFONA”
De NOVOS CONTOS DA MONTANHA
INFÂNCIA
NERO
Aos dois meses de idade foi adoptado por uma família; deram-lhe um nome.
Deram-lhe mimos e boa comida.
Teve amigos com os quais brincou.
TAFONA (Caçador)
Era um miúdo da aldeia, que na meninice andou pelas serras aos grilos e pardais.
JUVENTUDE/ MAIORIDADE
NERO
Teve muitas aventuras e desventuras, na companhia dos seus amigos de infância.
Foi pai de um cachorro, o Jau. Quando o viu pela primeira vez, ficou todo orgulhoso.
Não teve uma liberdade plena: começou muito cedo a ser treinado pelo dono mais novo para a caça às perdizes, com muita disciplina e poucos mimos.
Nas manhãs calmas e frias de Janeiro, gostava de subir aos montes e do cheiro das perdizes, que lhe entrava pelo nariz, não fosse ele um verdadeiro Perdigueiro.
TAFONA (Caçador)
Toda a sua vida foi passada a caçar perdizes, lebres e coelhos.
Tudo o que o rodeava não era do seu interesse.
Tinha uma paixão imensa pela Natureza.
Casou e foi pai de filhos. “Nada disso o tocara por dentro”.
A sua liberdade tinha acabado.
VELHICE / MAIORIDADE
NERO
Estava com oito anos e muito doente. Nem conseguia levantar-se: arrastava-se e ficava para ali de olhos fechados sem saber se alguém da casa teria pena dele, quando partisse.
TAFONA (Caçador)
Com os seus oitenta e cinco anos, a vida sempre lhe fora estranha.
Não se dava com ninguém da aldeia.
Agora o reumatismo apanhava-lhe as pernas. Já não conseguia ir mais longe, como era seu costume, para caçar. Tinha de se contentar em ficar mais perto. Assim, não podia alhear-se do que se passava à sua volta.
Ao fim daqueles anos todos, conhecera finalmente o mundo triste dos seus conterrâneos.
Azeitão, 22-12-2017
Carmo Bairrada
O CAÇADOR E O NERO
Eles não falam…
O
Nero não fala, porque não lhe foi dado esse dom! Aliás, como se costuma dizer,
“só lhe falta falar”… mas ouve e está atento, e compreende muito do que é dito.
Sabe quando estão a falar para ele e quando estão a falar dele, quando lhe dão
uma ordem obedece logo: aprendeu de pequenino e não foi fácil… Gosta de andar
pelas matas a correr atrás dos coelhos e das perdizes e mostrar ao dono novo
que conhece as leis dos humanos… É o cão da casa.
O
Tafona… esse não fala porque prefere o silêncio em que se pode perder em
reflexões íntimas, a admirar a natureza que o espanta: a natureza envolvente
dos campos e das serras e a natureza dos homens que, por vezes, o espanta ainda
mais.
Quando
fala – ou melhor, quando é obrigado a falar! - é por monossílabos, responde “sim”, “não” e, quando lhe falam,
mal ouve : sorri e passa adiante.
Escuta,
outrossim, os ruídos da floresta, o restolhar do coelho que se esconde nas
charnecas, da rola que se assusta quando se aproxima e levanta um vôo
atabalhoado…
E
aí, não precisa do dom da fala ! É um caçador.
Então
eles não falam : mas caçam. Percorrem milhas nos vales e colinas, sobem às
serras e descem aos riachos, e voltam da caça com os olhos cheios de brilho e
de contentamento num amor comum da natureza, com as suas belezas e as suas
crueldades.
Nero
ama os animais que caça, mas ama ainda mais os humanos com quem vive e
retribuem o seu amor.
Tafona
ama – talvez ! – os humanos que mal distingue à sua volta, mas ama, sobretudo
os animais…
Mercedes Ferrari
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