domingo, 7 de fevereiro de 2016

Mulher/Natureza


MOTE

Descalça vai pera a fonte
Lianor pela verdura;
vai fermosa, e não segura.

VOLTAS

Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.

Luís de Camões (1524? - 1580)

 CANTIGA

Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.


A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.


Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com üa sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.


As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.
Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.

Francisco Rodrigues Lobo (1579-1621)

Poema da Auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.
Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.
Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.


Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.
Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

António Gedeão, (1906 - 1997) in 'Máquina de Fogo' 

mote seu
Se Helena apartar
do campo seus olhos,
nascerão abrolhos.

voltas
A verdura amena,
gados que pasceis,
sabei que a deveis
aos olhos d' Helena.
Os ventos serena,
faz flores d' abrolhos
o ar de seus olhos.
Faz serras floridas,
faz claras as fontes...
Se isto faz nos montes,
que fará nas vidas?

Trá-las suspendidas,
como ervas em molhos,
na luz de seus olhos.
Os corações prende
com graça inumana;
de cada pestana
uma alma lhe pende.
Amor se lhe rende
e, posto em giolhos,
pasma nos seus olhos.

Luís de Camões


Ondados fios de ouro reluzente,
Que, agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos,
Fazeis que a sua beleza se acrescente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece,
Se na alma em doces ecos não o ouvisse!...

Se, imaginando só tanta beleza,
De si em nova glória a alma se esquece,
Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse…
Luís de Camões



“CHOVEM NELA GRAÇAS TANTAS!”

Parece que os sinos de todas as Catedrais repicam em uníssono, quando Camões canta a beleza feminina! Seja a mais recatada donzela da corte,ornamentada com as mais belas jóias e ricamente vestida, ou a mais humilde jovem do povo, nos seus simples trajes, todas elas lhe inspiraram os mais belos poemas!
“Descalça vai pera fonte
 Lianor pela verdura
 Vai fermosa e não segura!”
Por opção ou por necessidade, estes pés descalços que pisavam o chão com tanta
graça e leveza, mereceram o reparo do poeta que tão bem soube descrever toda a beleza daquela Lianor que “Levava na cabeça o pote e o texto nas mãos de prata”
Certamente no cumprimento de uma das muitas lides domésticas… naquela época recorria- se às fontes e aos riachos para se obter a água tão necessária à vida! A brancura da sua pele, o contraste branco e escarlate das suas roupas, o louro entrançado dos seus cabelos, que a touca deixava escapar, a fita que lhe deixava a descoberto a alva garganta… Como se de uma pintura se tratasse, tudo o poeta descreveu em pinceladas de poesia que nos encanta!
“ Tão linda que o mundo espanta,
  Chove nela graça tanta
  Que dá graça à fermosura;
  Vai fermosa e não segura!”
Tal era o arrebatamento, que fez o poeta achar que todas as graças do mundo choviam sobre a já de si formosa donzela! Camões foi sem dúvida o poeta do amor,
o pintor dos mais belos quadros que só a poesia sabe descrever e foi com os olhos da alma que ele vestiu as mulheres com as cores dum arco-íris tão especial!

“FORMOSA LIANOR”
Lianor de neve pura
Tão linda que a formosura,
Humilde e delicada
Foi certamente talhada
Para ser uma rainha!
Tão simples, tão menininha,
Em quem tanta graça choveu,
Foi assim que a descreveu,
Como um raio de sol
O Poeta do Amor!...
Elita Guerreiro*28/1/2016

Sem comentários: