Os Meus Brincos
Não me recordo se foi há muito
tempo ou não, mas um dia ouvi dizer que as pérolas estão ligadas à lua, à água
e à mulher. Acentuam a natureza lunar e feminina e a sua forma esférica está
perto da perfeição. Nasce das águas, de uma concha, encolhida como um feto.
A Vida ofereceu-me duas pérolas.
Com vaidade, colocava-as nas orelhas e acariciava-as, entre os dedos, como se
de minhas filhas se tratassem. Uma de cada lado, de mãos dadas, para que não se
afastassem. Como se aquele aperto de mão as protegesse e as mantivesse sempre
comigo. Olhava-me uma última vez ao espelho para ter a certeza de que o
equilíbrio do conjunto reflectia a minha felicidade.
Com o tempo, fui perdendo
segurança em usá-las. Os dedos, magoados por instantes e por palavras, e os
olhos turvos, por lágrimas e pelos anos, criaram-me insegurança. Tenho
dificuldade em alindar-me. Falta-me vontade e oportunidade. Falta-me o tempo
consumido, durante anos, enquanto afagava as formas esféricas dos corpos das
minhas meninas.
Ficou a sensação da suavidade da
pele das pérolas que guardo numa caixa forrada a veludo tão encarnado e macio
quanto o meu coração se sente cada vez que penso nelas.
Às vezes ainda coloco os brincos.
Compridos como os das ciganas. Gosto de me sentar, de me pôr a inventar,
tentando vender vidas a troco de sorrisos.
Quando os retiro, sozinha no meu
quarto, as marcas nas orelhas, provocadas pelo peso, chegam a doer. Às vezes,
solto pérolas mascaradas em lágrimas. Escorrem silenciosas e mornas. Sinto que
a minha força se vai esgotando e, quando a imprecisão dos meus movimentos me magoam
as entranhas, quando as minhas mãos já não me obedecem como antes, quando os
meus pés, meio pedra-meio borracha, parecem não caber em si mesmos e os sinto
apertados como pés de concubina, espreito as pérolas que receio usar, por os
meus dedos já não serem suficiente hábeis para as colocar e as deixem rolar
para onde nunca mais as encontre.
Abro a caixa forrada a veludo
como se de um cofre se tratasse. Inspiro o cheiro que quero que seja a mar e
imagino os seus cantos, já esbranquiçados de gastos, embebidos na espuma onde
qualquer concha poderia ter nascido.
Fecho a caixa com um som mudo,
como mudo é o meu choro quando me despeço delas.
Maria José Borges
Apresso o passo sempre que passo
por ele. O seu olhar penetra-me sem cerimónia e, embora me seja familiar, não
me deixa indiferente. Tange-me a alma e toca-me o espírito. O meu corpo já se
habituou a exercitar movimentos para forçar a indiferença que quero mostrar.
Treino mais uma passada e, muitas vezes, a rapidez com que o faço, revela o
receio que tenho e a impotência que sinto por saber que não posso competir com
ele.
Aparece-me no corredor quando, na
correria do dia-a-dia, entre portas, levo e trago roupa para distribuir pelos
quartos de quem lá dorme e de quem deixou de dormir. Surge-me no fundo de um
copo quando o tento abrilhantar ou na superfície de um azulejo polido por
algumas lágrimas de delírio.
No quarto, sei que estará à minha
espera. Entre a intimidade debruada a cortinados transparentes e o aroma de
alfazema dos lençóis de algodão branco. Sei exactamente onde o irei encontrar e
passo por ele com indiferença.
Ele lá está. Em silêncio,
escudado por prata que lhe dá o ar imponente de que se orgulha e por alumínio
que lhe permite a frieza de que necessita e contra a qual sou incapaz de lutar.
Só o vidro, mesmo frio, lhe confere alguma coisa de humano. Talvez porque, ao
partir-se, me lembre gritos estridentes de alguém preso naquela amálgama.
Frente a frente, o meu olhar
esgrima-o. Ele, inerte, devolve-me o olhar. A sua superfície é conquistada pelo
meu corpo e, só assim, consigo sentir-me mais forte do que ele. Estamos
perigosamente próximos e consigo torvar-lhe o olhar com o meu bafo e distrai-lo
com gatafunhos iguais aos que eu fazia nos vidros da cozinha dos meus cinco
anos.
Sei que haverá um momento em que
irá abandonar o jogo da reciprocidade e deixarei de ter respostas. Sei que já
me vi e revi muitas e muitas vezes naquele espelho com que a minha vida parte e
reparte medos e segredos, sonhos e contos enfadonhos. Sentimentos em corrupio e
lengalengas feitas de missangas e de fios.
Deixo-me mergulhar em águas
mornas, naquele espelho, e nado entre brilhos e trilhos para que, logo a
seguir, me deixe abandonar nas asas de condor inventado que me leva para outro.
Sempre à pressa, mergulho entre
tubarões que me acordam o corpo e, logo a seguir, sinto a cara cuspida pelo
mar, magoado por hélices que o rasgam e o obrigam a espumar. Sinto-me
barbaramente observada por peixes e agarrada por algas. Mil seres curiosos
encostam-se languidamente, numa dança sensual. Sem compreender a razão, sinto
uma enorme necessidade de transformar os seus olhos em berlindes.
Sacudo o sal do corpo. Uma
margaritta iria lavar o sal da minha boca. Ao longe, os índios acenavam
lagostas como piratas com suas pérolas.
Encaro novamente o sol.
O sol, batatas fritas e Bolas de
Berlim. Bebi vodka em S. Petersburgo e namorei em Porto Fino. Fui à Ópera em
Viena e conheci melhor Picasso em Antibes. Sonhei com Miró e brinquei às
pedrinhas com Gaudi em Barcelona. Passeei por Versailles e comi Fondue na
Suíça. Torturei-me com chocolates belgas e estonteei-me na praça de Dan. Soltei
o corpo ao som de mornas em Cabo Verde e ritmei a minha alma ao som do merengue
caribenho. A Salsa deu um toque especial e deixei-me envolver nas cores e
aromas das medinas marroquinas, enquanto descobria sabores com os Tuaregues,
num convite do olhar, no repartir a sua vida escavada em rocha, como se de
formigas se tratassem. Matei o paladar, entre o acre e o picante, com a água
que bebi de nascentes defendidas pelo verde do Gerês e lavei os olhos com as
paisagens do Minho. Atravessei o Atlas e espreguicei-me em Argel. Acordei com o
calor do deserto a bater na tenda misturado com o olhar curioso de Berberes e
com o silêncio das noites dormidas em hotéis de luxo em Cannes.
Assisti a aulas de Engenharia no
Panamá e fixei sorrisos tímidos e crestados de índias interrompidos pela
tagarelice dos seus meninos, afinal e ao cabo, todos os meninos são tagarelas.
Vibrei com os No Name Boys e,
silenciosamente, ouvi música de Câmara no Convento de Mafra. Mar e cheiro. O
cheiro a óleo agarrado ao navio até à Estónia e as ilhotas pisadas em
Estocolmo. A viagem pelo Danúbio seguida pela correria de crianças ao longo do
Azul das suas margens. Dancei ao som dos Pink Floyd e adormeci a ouvir Leonard
Cohen. Andei em lanchas e veleiros e pesquei no Pacífico para logo me perder
por amores em Praga e sentir-me esmagada perante a grandeza de Budapeste.
Ouvi passos apressados de
princesinhas a saltitar nas escadarias do Bussaco e joguei com elas. As mães
brincam com as filhas…
Protegia-as das estalactites das
minas de Mira d’Aire e mirei-as quando as senti mulheres.
Aqueci-as do mar de Moledo e
disse-lhes para não terem medo. Era feitiço e não bruxedo.
Arrastei-me nas águas do Algarve
e sulquei paisagens no Douro. Bebi do vinho e queimei-me com o mosto. Ficou o
gosto e o cheiro. As flores. O jardim de Grace Kelly e o Casino de Monte Carlo.
A marina. Outra vez o mar que faz lembrar o cheiro adocicado do suor de uma
sesta. O pescoço húmido das minhas filhas com aroma de colónia de bebé ou o de
mãos dadas no fim de uma tarde de calor. Os seus rostos marcados por lágrimas
tristes, enquanto tentava secar-lhes a dor com um beijo que prometi ser só
delas.
Agarrei mãos pegajosas de
brincadeiras e ainda sinto os seus dedos a furarem a minha carne quando a
despedida era mais dolorosa. O seu peso no meu colo e no meu coração. O quente
dos seus corpos, contra o meu, no abraço e o melaço de beijos babados. As suas
bocas, sedentas, a sugarem-me o corpo, a alimentarem-se de mim. O primeiro
sorriso, assimétrico. O primeiro passo, vacilante. A primeira palavra, balbuciante.
Lembro-me de tudo e guardo-o bem
escondido para que o tempo e a memória não o levem para longe.
Decorei momentos como aquele em
que lhe disse que sim. Que valeria a pena.
Sinto-o como se ele fosse a minha
metade e a unidade, só por meio, não existe como um todo. Eu existo por ele
existir. É o segredo que restou de algumas mágoas recíprocas que já se foram
esbatendo e do sofrimento que nos provocámos. Tudo faz parte da vida. Da nossa
vida. Silêncios impostos, lágrimas engolidas e culpas mútuas. Situações que
nunca deveriam ter acontecido. Afinal, nenhum de nós merecia.
Tange-me a alma e toca-me o
espírito. O amor é assim… quente e húmido como o bafo com que besunto o espelho
onde não me quero descobrir por sentir que já não há tempo para corrigir o
traço com que desenhei a minha vida. Afinal, sempre ponderei. Sempre fui
exigente comigo e o meu compromisso com o destino passa por ser rigorosa.
Só queria ter mais tempo. Mais
tempo para dar e ganhar afetos. Beijos e abraços.
Deste lado, estou eu e o meu
presente, fruto do que me tornei ou do que me tornaram. Olho em volta e cada
objecto me conta uma história. A fotografia dos meus Pais, a jarra da Avó ou a
caneta do Avô. Foram eles que contribuíram para eu ser quem sou e
retribuo-lhes, com devoção, terem-me entregue partes das suas vidas, mesmo sem
nunca terem vindo a saber que, um dia, eu iria existir.
Cada objecto me lembra alguém que
me indicou, subtilmente e em silêncio, o caminho que tenho percorrido. Até
aqueles que só conheci em cartão fazem parte de mim, por estarem na minha
génese.
Reparo agora que, à minha frente,
o espelho está baço. Para trás dele está uma vida que eu escolhi. Que desenhei
nos intervalos do meu papel de mãe e de mulher e que nenhum sopro pode apagar,
porque mataria parte de mim.
Limpo a sua pele prateada com o
pano mais macio que tenho para que não o fira. As minhas mãos, em movimentos
circulares, libertam-lhe lágrimas que também são minhas. A sua pele, cada vez
mais brilhante, contrasta com o papel crepe em que a minha pele parece estar
transformada. O crepe com que as rugas se alimentam e os anos se sustentam.
Rasgo-o e envolvo o meu sonho de
ser artista. Finalmente, entendi que a minha arte está repartida por todas as
pessoas com que cruzei ao longo da minha vida. Isso é a minha arte e a minha
manha.
Do outro lado do espelho esconde-se
o mundo de Alice no País das Maravilhas, porque Alice já não mora aqui e então a minha saudade transforma-se num sorriso enquanto o
espanta-espíritos me recorda que os mortos também sentem.
Maria José Borges
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