segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Inéditos de Maria José Borges


Os Meus Brincos

Não me recordo se foi há muito tempo ou não, mas um dia ouvi dizer que as pérolas estão ligadas à lua, à água e à mulher. Acentuam a natureza lunar e feminina e a sua forma esférica está perto da perfeição. Nasce das águas, de uma concha, encolhida como um feto.
A Vida ofereceu-me duas pérolas. Com vaidade, colocava-as nas orelhas e acariciava-as, entre os dedos, como se de minhas filhas se tratassem. Uma de cada lado, de mãos dadas, para que não se afastassem. Como se aquele aperto de mão as protegesse e as mantivesse sempre comigo. Olhava-me uma última vez ao espelho para ter a certeza de que o equilíbrio do conjunto reflectia a minha felicidade.
Com o tempo, fui perdendo segurança em usá-las. Os dedos, magoados por instantes e por palavras, e os olhos turvos, por lágrimas e pelos anos, criaram-me insegurança. Tenho dificuldade em alindar-me. Falta-me vontade e oportunidade. Falta-me o tempo consumido, durante anos, enquanto afagava as formas esféricas dos corpos das minhas meninas.

Ficou a sensação da suavidade da pele das pérolas que guardo numa caixa forrada a veludo tão encarnado e macio quanto o meu coração se sente cada vez que penso nelas.
Às vezes ainda coloco os brincos. Compridos como os das ciganas. Gosto de me sentar, de me pôr a inventar, tentando vender vidas a troco de sorrisos.
Quando os retiro, sozinha no meu quarto, as marcas nas orelhas, provocadas pelo peso, chegam a doer. Às vezes, solto pérolas mascaradas em lágrimas. Escorrem silenciosas e mornas. Sinto que a minha força se vai esgotando e, quando a imprecisão dos meus movimentos me magoam as entranhas, quando as minhas mãos já não me obedecem como antes, quando os meus pés, meio pedra-meio borracha, parecem não caber em si mesmos e os sinto apertados como pés de concubina, espreito as pérolas que receio usar, por os meus dedos já não serem suficiente hábeis para as colocar e as deixem rolar para onde nunca mais as encontre.
Abro a caixa forrada a veludo como se de um cofre se tratasse. Inspiro o cheiro que quero que seja a mar e imagino os seus cantos, já esbranquiçados de gastos, embebidos na espuma onde qualquer concha poderia ter nascido.
No centro, as minhas pérolas aninham-se, num sono mágico, ao som do canto das sereias.

Fecho a caixa com um som mudo, como mudo é o meu choro quando me despeço delas.

Maria José Borges 

Alice Já Não Mora Aqui.

Apresso o passo sempre que passo por ele. O seu olhar penetra-me sem cerimónia e, embora me seja familiar, não me deixa indiferente. Tange-me a alma e toca-me o espírito. O meu corpo já se habituou a exercitar movimentos para forçar a indiferença que quero mostrar. Treino mais uma passada e, muitas vezes, a rapidez com que o faço, revela o receio que tenho e a impotência que sinto por saber que não posso competir com ele.
Aparece-me no corredor quando, na correria do dia-a-dia, entre portas, levo e trago roupa para distribuir pelos quartos de quem lá dorme e de quem deixou de dormir. Surge-me no fundo de um copo quando o tento abrilhantar ou na superfície de um azulejo polido por algumas lágrimas de delírio.
No quarto, sei que estará à minha espera. Entre a intimidade debruada a cortinados transparentes e o aroma de alfazema dos lençóis de algodão branco. Sei exactamente onde o irei encontrar e passo por ele com indiferença.
Ele lá está. Em silêncio, escudado por prata que lhe dá o ar imponente de que se orgulha e por alumínio que lhe permite a frieza de que necessita e contra a qual sou incapaz de lutar. Só o vidro, mesmo frio, lhe confere alguma coisa de humano. Talvez porque, ao partir-se, me lembre gritos estridentes de alguém preso naquela amálgama.
Frente a frente, o meu olhar esgrima-o. Ele, inerte, devolve-me o olhar. A sua superfície é conquistada pelo meu corpo e, só assim, consigo sentir-me mais forte do que ele. Estamos perigosamente próximos e consigo torvar-lhe o olhar com o meu bafo e distrai-lo com gatafunhos iguais aos que eu fazia nos vidros da cozinha dos meus cinco anos.
Sei que haverá um momento em que irá abandonar o jogo da reciprocidade e deixarei de ter respostas. Sei que já me vi e revi muitas e muitas vezes naquele espelho com que a minha vida parte e reparte medos e segredos, sonhos e contos enfadonhos. Sentimentos em corrupio e lengalengas feitas de missangas e de fios.
Deixo-me mergulhar em águas mornas, naquele espelho, e nado entre brilhos e trilhos para que, logo a seguir, me deixe abandonar nas asas de condor inventado que me leva para outro.
Sempre à pressa, mergulho entre tubarões que me acordam o corpo e, logo a seguir, sinto a cara cuspida pelo mar, magoado por hélices que o rasgam e o obrigam a espumar. Sinto-me barbaramente observada por peixes e agarrada por algas. Mil seres curiosos encostam-se languidamente, numa dança sensual. Sem compreender a razão, sinto uma enorme necessidade de transformar os seus olhos em berlindes.
Sacudo o sal do corpo. Uma margaritta iria lavar o sal da minha boca. Ao longe, os índios acenavam lagostas como piratas com suas pérolas.
Encaro novamente o sol.
O sol, batatas fritas e Bolas de Berlim. Bebi vodka em S. Petersburgo e namorei em Porto Fino. Fui à Ópera em Viena e conheci melhor Picasso em Antibes. Sonhei com Miró e brinquei às pedrinhas com Gaudi em Barcelona. Passeei por Versailles e comi Fondue na Suíça. Torturei-me com chocolates belgas e estonteei-me na praça de Dan. Soltei o corpo ao som de mornas em Cabo Verde e ritmei a minha alma ao som do merengue caribenho. A Salsa deu um toque especial e deixei-me envolver nas cores e aromas das medinas marroquinas, enquanto descobria sabores com os Tuaregues, num convite do olhar, no repartir a sua vida escavada em rocha, como se de formigas se tratassem. Matei o paladar, entre o acre e o picante, com a água que bebi de nascentes defendidas pelo verde do Gerês e lavei os olhos com as paisagens do Minho. Atravessei o Atlas e espreguicei-me em Argel. Acordei com o calor do deserto a bater na tenda misturado com o olhar curioso de Berberes e com o silêncio das noites dormidas em hotéis de luxo em Cannes.
Assisti a aulas de Engenharia no Panamá e fixei sorrisos tímidos e crestados de índias interrompidos pela tagarelice dos seus meninos, afinal e ao cabo, todos os meninos são tagarelas.
Vibrei com os No Name Boys e, silenciosamente, ouvi música de Câmara no Convento de Mafra. Mar e cheiro. O cheiro a óleo agarrado ao navio até à Estónia e as ilhotas pisadas em Estocolmo. A viagem pelo Danúbio seguida pela correria de crianças ao longo do Azul das suas margens. Dancei ao som dos Pink Floyd e adormeci a ouvir Leonard Cohen. Andei em lanchas e veleiros e pesquei no Pacífico para logo me perder por amores em Praga e sentir-me esmagada perante a grandeza de Budapeste.
Ouvi passos apressados de princesinhas a saltitar nas escadarias do Bussaco e joguei com elas. As mães brincam com as filhas…
Protegia-as das estalactites das minas de Mira d’Aire e mirei-as quando as senti mulheres.
Aqueci-as do mar de Moledo e disse-lhes para não terem medo. Era feitiço e não bruxedo.
Arrastei-me nas águas do Algarve e sulquei paisagens no Douro. Bebi do vinho e queimei-me com o mosto. Ficou o gosto e o cheiro. As flores. O jardim de Grace Kelly e o Casino de Monte Carlo. A marina. Outra vez o mar que faz lembrar o cheiro adocicado do suor de uma sesta. O pescoço húmido das minhas filhas com aroma de colónia de bebé ou o de mãos dadas no fim de uma tarde de calor. Os seus rostos marcados por lágrimas tristes, enquanto tentava secar-lhes a dor com um beijo que prometi ser só delas.
Agarrei mãos pegajosas de brincadeiras e ainda sinto os seus dedos a furarem a minha carne quando a despedida era mais dolorosa. O seu peso no meu colo e no meu coração. O quente dos seus corpos, contra o meu, no abraço e o melaço de beijos babados. As suas bocas, sedentas, a sugarem-me o corpo, a alimentarem-se de mim. O primeiro sorriso, assimétrico. O primeiro passo, vacilante.  A primeira palavra, balbuciante.
Lembro-me de tudo e guardo-o bem escondido para que o tempo e a memória não o levem para longe.
Decorei momentos como aquele em que lhe disse que sim. Que valeria a pena.
Sinto-o como se ele fosse a minha metade e a unidade, só por meio, não existe como um todo. Eu existo por ele existir. É o segredo que restou de algumas mágoas recíprocas que já se foram esbatendo e do sofrimento que nos provocámos. Tudo faz parte da vida. Da nossa vida. Silêncios impostos, lágrimas engolidas e culpas mútuas. Situações que nunca deveriam ter acontecido. Afinal, nenhum de nós merecia.
Tange-me a alma e toca-me o espírito. O amor é assim… quente e húmido como o bafo com que besunto o espelho onde não me quero descobrir por sentir que já não há tempo para corrigir o traço com que desenhei a minha vida. Afinal, sempre ponderei. Sempre fui exigente comigo e o meu compromisso com o destino passa por ser rigorosa.
Só queria ter mais tempo. Mais tempo para dar e ganhar afetos. Beijos e abraços.
Deste lado, estou eu e o meu presente, fruto do que me tornei ou do que me tornaram. Olho em volta e cada objecto me conta uma história. A fotografia dos meus Pais, a jarra da Avó ou a caneta do Avô. Foram eles que contribuíram para eu ser quem sou e retribuo-lhes, com devoção, terem-me entregue partes das suas vidas, mesmo sem nunca terem vindo a saber que, um dia, eu iria existir.   
Cada objecto me lembra alguém que me indicou, subtilmente e em silêncio, o caminho que tenho percorrido. Até aqueles que só conheci em cartão fazem parte de mim, por estarem na minha génese.
Reparo agora que, à minha frente, o espelho está baço. Para trás dele está uma vida que eu escolhi. Que desenhei nos intervalos do meu papel de mãe e de mulher e que nenhum sopro pode apagar, porque mataria parte de mim.
Limpo a sua pele prateada com o pano mais macio que tenho para que não o fira. As minhas mãos, em movimentos circulares, libertam-lhe lágrimas que também são minhas. A sua pele, cada vez mais brilhante, contrasta com o papel crepe em que a minha pele parece estar transformada. O crepe com que as rugas se alimentam e os anos se sustentam.
Rasgo-o e envolvo o meu sonho de ser artista. Finalmente, entendi que a minha arte está repartida por todas as pessoas com que cruzei ao longo da minha vida. Isso é a minha arte e a minha manha.
Do outro lado do espelho esconde-se o mundo de Alice no País das Maravilhas, porque Alice já não mora aqui e então a minha saudade transforma-se num sorriso enquanto o espanta-espíritos me recorda que os mortos também sentem.

Maria José Borges

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