terça-feira, 12 de maio de 2015

"Donzela que Vai à Guerra", esquema de análise III (Mercedes Ferrari)

CONSTRUÇÃO DA MÁSCARA
AUTOR / TEXTOS→


BUESCU I

LIONARDO
(1)
BUESCU II

LIONARDA
(1)
ALMEIDA
GARRETT
DONZELA…
XXXIX 131
(2)
FIRMINO MARTINS
D. MARTINHO
XXXIX 132
(3)
V. R.P.
XXXIX 133
ALFERES NOVO
(4)
COSTA
FONTES

XXXIX134
(5)
PERE FERRÉ
XXXIX 135
(6)
ELEMENTOS DA “MÁSCARA”↓
1.       ARMA

X
X
X

X
X
X
ESPADA
X
X

X
X


PISTOLA



X



ADAGA


X




CAVALO
X
X
X

X


ESPORAS


X

X


2.       ROUPAS
X
X
X
X
X
X
X
LUVAS, GUARDAS


X


X
X
COLETE, FARDA
X

X
X



CASACO, CAPOTE
X


X
X


FATO, ALFAIATE
X
X





BONÉ, GIBÃO


X

X


CALÇA, CEROULA

X





DISFARCE
X






3.       ADORNOS
X
X
X
X
X


FITAS, RENDAS
X
X

X



JÓIAS, LENÇOS



X
X


PRAÇA, FEIRA


X
X



TENDA

X


X


PENTE

X

X



TESOURA

X

X
X
X
X
4.       VEGETAL


X

X
X
X
JARDIM




X
X

FLORES




X


CRAVOS, ROSAS






X
JUNQUILHO




X


POMAR


X




MAÇÃ, CIDRA


X




CAMOÊS/SES


X




5.       ASSENTOS
X
X
X
X



ESTRADO, BANCO



X



CADEIRA, ASSENTO

X





6.       BILHETE, CARTA
X
X





7.       FERROS DE ENGOMAR


X




8.       SINOS





X

9.       PÃO, FACA



X

X

(1)     BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, Monsanto Etnografia e Linguagem, Presença, s/d (pp.169 - 171)
(2)     Almeida Garrett in Correia, João David Pinto, Romanceiro Tradicional Português, Comunicação, 1984 (pp. 347-350)
(3)     Firmino Martins, versão de Vinhais, Trás-os-Montes in Correia, João David Pinto, op. Cit, (pp.350-352)
(4)     VRP, Parada de Infanções, Bragança, [canta-se de tarde] in Correia, op. Cit. (pp. 353, 354)
(5)     Costa Fontes, recolhido em Nova Inglaterra, in Correia, op. Cit. (pp.354, 355)

(6)     Pere Ferré, versão do Caniçal, Machico, Madeira, in Correia, op. Cit. (pp.355, 356)

DESCONSTRUÇÃO da MÁSCARA

INICIAÇÃO ATRAVÉS DO “TRANSVESTISMO”
ANÁLISE

1)      SITUAÇÃO DE PARTIDA: A HISTÓRIA 
                  - Guerra entre França e Aragão
                  - Família :  Pai, mãe e filhas – nenhum filho varão:


a - O pai, já com alguma idade sofre de não poder participar na guerra que se anuncia e censura a mãe por não ter dado à luz nenhum rapaz que o pudesse substituir nessas lides guerreiras.
b - Uma das filhas  - segundo os autores, ou a mais velha ou a mais nova – decide /oferece-se para ir para a guerra
no lugar do pai, disfarçada de homem.
c - Protestos do pai, pelo perigo possível de reconhecimento do estratagema e consequente “desmascaramento”, dada a constituição física de uma rapariga em relação à de um rapaz, e propostas de soluções pela filha, para obviar a este estado de facto, construindo um “disfarce” que possa ocultar os atributos femininos da rapariga.

a)                                                                                                       
“Já se apregoam as guerras entre França e Aragão : ai de mim que já sou velho, não nas posso brigar não !”
(in Garrett, Romanceiro)

“Mal hajas tu ó Maria, mai’la tua geração, de 7 filhas que teveste, nê uma saí varão !”
(in L. Buescu, Monsanto Etnografia e Linguagem)

ou
  
“Triste de mim que estou velho, as guerras m’acabarão, de 7 filhas que tenho, nenhuma homem varão!”
(O Alferes Novo, Versão de Parada d’Infanções, c. de Bragança = V.R.P. 1958)

Ou ainda

“Ai de mim que ‘pregoam guerra no campo do Dragão, 3 filhas que Deus me deu, sem ter um filho varão!”
(Caderno pessoal de um popular da Ilha das Flores, J.G.Trigueiro, Açores, 1978, Recolhido por Costa Fontes)


b)

“Ai papai, ê vou pr’á guerra, pr’á guerra de D. João !”
(Versão do Caniçal, Machico, Madeira, recolhida por Pere Ferré e A-M. Martins - 1981)

“Responde a filha mais velha com toda a resolução : Venham armas e cavalo que eu serei filho barão”
(A.Garrett, Romanceiro Tradicional Português)

ou

“Responde a filha mais nova, como filha de liberação: Arranje-me espada e cavalo que eu serei homem-varão!”
(in Alferes Novo)

 Ou ainda

“Levantava-se a mais nova, com toda a sua discrição: Ó meu pai, ó minha mãe, deite-me sua bênção: eu de hoje em diante quero ser seu filho varão!”
(in Costa Fontes)


c)

Os protestos do velho pai sobre as características femininas da filha que receia a façam reconhecer no campo de batalha como sendo mulher :

·         O cabelo comprido, os olhos “fagueirinhos”, o peitinho crescido (Alferes Novo)
·         Cabelo grande, olhos gazidos, ombros e peito altos, mãos e pés muito brancos, (Costa Fontes)
·         Perninhas grossas, cabelos grandes, olhos bonitos, carinha e mãozinhas finas, ombrinhos altos (Padre Ferré)
·         Olhos mui vivos, ombros e peitos mui altos, mãos pequeninas e pés delicados (A. Garrett)
·         Pés muit’delicados, pêtos muit’grandes, olhos faguêrinhos, o passo miudinho (L.Buescu in: Lionardo)
·         Carinha fina
  
A cada protesto do pai, a filha encontra uma solução, sempre baseada em ferramentas masculinas.
(Repare-se que a mãe nunca é citada como parte da discussão)

·         Cabelo grande ou comprido : pede “pentém e tesoura, que os dêtará ao tchão”; “há tesouras na terra, p’ra mo deitarem ao chão”; “dê-me cá uma tesoura, verá-o cair ao chão”
( L.Buescu in Lionarda; Costa Fontes; P.Ferré; F. Martins)

·         Olhos vivos, gazidos, fagueirinhos : “os dêtarei ao chão” ou “abaixarei-os ao tchão” ou “quando falarem comigo, inclinarei-os ao chão” ou “porei os olhos ao chão”;
(L.Buescu in Lionardo e Lionarda; F.Martins; A.Garrett: P. Ferré)

·         Mãos brancas, finas, mimosas : “c’o sol e c’a geada, ó mê pasi se queimarão”, “metê-las-ei numas luvas e de lá não sairão”, “venham já guardas de ferro e compridas ficarão”, “dê-me papai umas luvas que m’ataquem as mãos”
(A.   Garrett; L.Buescu; in Lionarda; Costa Fontes; P. Ferré)

·         Pés pequeninos, delicados, muito brancos : “metê-los-ei nuns botins e lá sempre andarão”; “calçarei botas e esporas, nunca delas sairão”; “dê-m’as suas botas, mê pai, intcharei-as de algodão”; “façam-me a bota comprida, que tudo encobrirão”
(L. Buescu in Lionardo; V.R.P. in Alferes Novo; C. Fontes)

·         Peito alto, ombros altos : “venha gibão apertado os peitos encolherão”; “apertar-me-ei com o espiritim, assim não me conhecerão”; “dê-me papai umas armas que os ombrinhos vão ao chão”; “venham armas bem pesadas que os ombros abaixarão”;
(A.   Garrett; C. Fontes;

·         Carinha fina : “quando passar pelos homes, faço cara de vilão”
(P. Ferré) 


2)      NO CAMPO DE BATALHA : A INICIAÇÃO

-  A Donzela disfarçada de homem (apelidado de D. Martinho (F. Martins e P. Ferré), ou Alferes Novo (V.R.P.) ou Conde Daros (A. Garrett), ou simplesmente “o varão” (C. Fontes)
-  O Capitão comandante.

a)      A desconfiança
b)      As armadilhas
c)       Os subterfúgios

a)    A donzela disfarçada de homem, chega ao campo e é posta sob as ordens de um capitão. Este, repara que o jovem tem uma figura fina e, num primeiro tempo, fica desconfiado com olhos do “rapaz” que lhe parecem demasiado femininos e, à medida que o tempo vai passando, apaixonado por aqueles olhos, anda atordoado, perde o sono e não tem descanso; decide então confiar-se á sua mãe."

b)      A mãe do jovem capitão inventa então uma série de armadilhas para desmascarar o rapaz - se ele não fôr um rapaz ! - e propõe várias estratégias ao filho, como :

   - levá-lo às compras, à feira, à tenda ou à praça, segundo as versões, para ver o que ele escolhe entre objectos femininos (rendas, fitas, jóias…) ou masculinos (armas, adagas, pistolas…)
  
 - Convidá-lo a jantar para ver se ele cruza as pernas como um homem, ou – noutras versões - se senta nos bancos mais altos, ou se escolhe assentos baixos (que a “modéstia” dita às mulheres), e deixá-lo partir o pão à mesa, pois se não fôr homem levará o pão ao peito para o cortar.

   - Levá-lo ao jardim (ou ao pomar, segundo as versões) e ver as reacções dele face às flores e aos frutos. Se fôr mulher, não resistirá a uma linda flor, ou a uma bela maçã.

   - Propor um passeio ao rio para nele se banhar e, assim, provar definitivamente se tem corpo de homem ou de mulher.

   - Irem dormir no mesmo quarto, para assim o ver despido. 

c)       A Donzela, arguta e sensível, responde a todas as propostas com uma “saída” airosa, percebendo que, se cair na armadilha, imediatamente dará provas do seu género. Assim, de subterfúgio em desculpas, fazendo tudo ao contrário daquilo que é esperado de uma rapariga, dá provas de ser rapaz.

    - Vai às compras e olha sem interesse para rendas e fitas, bonitas para meninas, não lhe interessam as jóias e, se admira os ferros de engomar não por isso escolhe comprar um, mas prefere comprar adagas, pistolas e admira tudo o que serve de panóplia a um guerreiro, lenço de seda bom para um senhor assoar e um bonezinho p’ra um soldado "figurar".

 - No jardim escolhe as rosas que são para homens e desdenha dos cravos que são para mulheres mas, numa versão, escolhe o junquilho verde “lindo para um soldado varar”;  no pomar rejeita as maçãs, lindas para damas  e escolhe os camoeses ou, noutra versão, uma cidra, linda para uma "sécia"  cheirar.

   - Ao jantar, vai sentar-se nos assentos mais altos por serem os mais adequados a um homem e afastando-se dos bancos baixos que são para mulheres, e em vez de levar o pão ao peito para o cortar, rompe-o com as mãos.

  - Quando vai passar a noite no mesmo quarto que o capitão, passa a noite em branco a passear e a conversar, e não dorme, para não ter que se despir.

   - Enfim, o capitão convida-o para ir tomar banho e nadar no rio. Aceita, mas não chega a despir-se – com a desculpa de que acaba de receber notícia de que deve partir sem mais demoras para casa dos pais.

3)   REVELAÇÃO

A Revelação da verdadeira identidade da Donzela, dar-se-á quando, ao receber, de facto, notícias de casa de seus pais - dizendo, numa versão (Leonor Buescu) que «veio uma carta do céu, traguia grande pesar: tinha a minha mãe morta e o mê pai a acabar»,  noutras versões (por ex.: A. Garrett) que «minha mãe já morta e seu pai se está a finar» e, noutras ainda (in Alferes Novo e F.Martins) que é seu «pai… já era morto, minha mãe ‘stava a finar» – a rapariga decide que já passou tempo demais longe dos seus e que, ao fim de sete anos de ausência, guerras e disfarces, chegou a hora de pôr cobro àquela situação  e voltar para junto dos seus e recuperar as características do seu género.

Propõe então ao Capitão voltar com ela, revelando-lhe o seu verdadeiro sexo (in Versão do Caniçal, P. Ferré : «…agora é que te digo que sou a pura donzela…» ou in Costa Fontes: «…7 i-anos te servi. Em donzela entrei e em donzela saí»)

Depreende-se assim desta proposta que também não lhe é indiferente o seu Capitão, o que se prova depois, quando, chegada a casa da família, apresenta o rapaz ao pai e pede-lhe, que o aceite como genro: «Senhor pai trago-lhe um genro, se o quiser aceitar…» (A. Garrett), ou «Que camarada/cavalêro é aquele…» pergunta o pai, «é o sê genlro, mê pai, se o quejer acéter» (L. Buescu), ou ainda «Senhor pai, trago-lhe un genro, se o quiser aceitar … se ainda me quer agora, com meu pai há-de falar» (A. Garrett), ou, simplesmente, lhe propõe, ela mesmo, casamento : « se quiseres casar comigo, anda lá p’rá minha terra» (in C. Fontes)

Há, no entanto versões em que a Donzela parte do teatro da guerra, sem que haja um desfecho romântico; temos, por exemplo, a versão de F. Martins, em que ela parte despedindo-se do capitão :
«…logo pela manhã trata de se despedir, Adeus ó meu capitão, já não o posso servir…»,
ou a versão “Alferes Novo” (V.R.P.):
«…fica-te tu, ó rei mouro, tu e o teu batalhão…», ou a de Costa Fontes: «…fica-te para aí ó rei, sete i-anos te servi…».
4) CONCLUSÃO
              
Este conto, nas suas diversas versões (como A Donzela Guerreira em geral), traz-nos uma explicação sobre a iniciação ao conhecimento da relação “feminino/masculino”, e uma das formas em como esse conhecimento é - pode ser – adquirido.
Esta donzela, virgem e com pouca vivência no que toca às relações entre homens e mulheres (de um modo geral, nas diferentes versões, viveu sempre com os pais, com irmãs, por isso pouco provavelmente terá tido conversas ou simplesmente visto muitos homens!) parece sentir uma tentação pelas façanhas guerreiras, e uma certa curiosidade de como se vive no mundo, fora do conforto do ninho paterno.
Serão, talvez, essa curiosidade e essa tentação, provavelmente inconscientes, os “motivos” que a levam – para além do facto de o pai ser demasiado idoso para ir participar na batalha, o que se torna aqui um “pretexto” – a oferecer-se para substituir o pai ou o hipotético irmão que nunca teve!
Faz, assim, uma operação de "charme" ao pai recalcitrante, para servir a própria vontade de se emancipar – vontade talvez ainda muito incipiente, difusa e inconsciente, mas vontade, sim, pois consegue atingir o seu objectivo à força de argumentos que não se esperariam de uma menina sem conhecimentos de lides guerreiras.
A sua emancipação passa, pois, não só pela sua saída do “ninho”, mas também pela experiência que vai adquirir por si mesma, sem a ajuda de tutor/es que lhe possam valer, no que demonstra uma maturidade enorme, pois sai-se com brio de todas as situações que se lhe deparam, pelo menos naquelas que nos são narradas...
Fala-se, aliás, apenas do lado romântico da história, da sua relação com o seu superior hierárquico que termina de modo feliz, com uma história de amor, mas nada se sabe dos caminhos percorridos, de relações inter-pessoais com outros homens ou mulheres, das batalhas travadas… terão tido lugar? Terá participado? É provável que sim, pois há uma guerra a acontecer nalgum lugar que nos resta desconhecido: a versão popular dos Açores, recolhida  por Costa Fontes é a única que fala do “Campo do Dragão”, mas nenhuma nos esclarece mais do que isso.
É uma bela história ("romance novelesco"), com uma carga emocional forte, que nos fala de uma emancipação feliz após uma iniciação à vida feminina depois de passar por uma vivência artificial do masculino, e que acaba bem, como um conto de fadas…!
Mercedes Ferrari, 
maio/2015

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