quarta-feira, 1 de junho de 2022

Convite à leitura do "Romance da Raposa", por Fernando Amaral

 BREVE ENSAIO SOBRE O ROMANCE DA RAPOSA

Este texto destina-se a todos aqueles que ainda não leram o “Romance da Raposa”. Escrevemo-lo para falar das histórias fascinantes da raposa Salta Pocinhas, das personagens que se movimentam no romance, da beleza dos seus diálogos, da verdade dos seus conteúdos e das mensagens que encerra.

O Natal de 1924 terá sido para Aníbal muito especial. Seu pai, Aquilino Ribeiro escrevera o “Romance da Raposa” para o presentear naquele dia festivo. Aquilino, antes de iniciar o romance, dedica ao filho algumas palavras. Nessa dedicatória, o autor escreve sobre a veracidade da obra e sobre a realidade da vida na natureza. Sublinha o facto das personagens serem todas reais, com voz para que possam “manifestar o que são” e alerta que viverão situações dramáticas, violentas, de vida ou de morte, tal como ditam as leis da natureza. Finalmente, apresenta-lhe a raposa Salta Pocinhas, heroína do romance. Fala-lhe da sua sabedoria e salienta a sua astúcia e a mestria com que consegue arquitetar artimanhas únicas.

O romance, propriamente dito, começa por descrever as andanças da raposinha numa altura em que, por ter atingido a maioridade, iniciara uma vida nova. Acabara de abandonar o confortável covil dos seus progenitores, tendo ficado entregue a si própria. Sem casa, sem reserva de alimentos e sem rumo definido, experimentava algumas dificuldades e o desânimo estava latente. Por isso, nas poucas horas de descanso que ia tendo, vinham-lhe à cabeça os bons tempos da juventude junto dos pais e dos irmãos. Recordava então, com saudade, a farta e confortável vida que tivera no passado, as brincadeiras, as caçadas, os banquetes…

Como veremos, a raposa, matreira e determinada, irá sempre conseguir sair por cima quando em confronto com o lobo D. Brutamontes, vice-rei daquelas paragens. D. Brutamontes, personagem importante do romance, senhor de uma força considerável, mostra uma grande ingenuidade e uma inteligência algo limitada. O teixugo D. Salamurdo, cortesão e assessor da corte, tem um comportamento de subserviência pelo que, pouco ou nada conta na corte do vice-rei. Outro interveniente de grande importância no romance é o urso sábio dos saltimbancos: personagem simpática, experimentada, conhecedora é, sem dúvida, uma voz da justiça naquelas paragens.

Quanto ao bicho homem, o autor não lhe reconhece protagonismo especial. Sempre que lhe dá algum palco, procura reduzir as suas intervenções ao mínimo necessário. Outras personagens, por certo não menos relevantes, evoluem nos diferentes capítulos, tais como: o lince, o corvo, a fuinha, cavalos, doninhas, arganazes, o bufo, gato bravo e tantos outros.

Apresentados os protagonistas, voltemos ao livro. Ao folheá-lo, ao acaso, deparámos com a página onde o lince, perante toda a bicharada ali reunida a pedido do lobo, lê uma importante proclamação a mando do vice-rei. Nessa proclamação, o lobo acusa a raposa de ter esfolado o teixugo e promete alvissaras a quem entregar a malvada à sua justiça. Entretanto, o urso que havia escutado a proclamação, aproveitou o facto de estarem todos reunidos para se dirigir à comunidade e tentar repor a verdade. Argumentava que, embora a raposa tivesse induzido o lobo a tirar a pele ao teixugo, a verdade é que fora o próprio lobo a cometer o crime.

Sem casa para descansar e com grandes dificuldades na obtenção de alimentos, a raposa ia sonhando com a confortável toca do teixugo e havia ficado a salivar com as fressuras que vira na casa do lobo. Na verdade, a raposa estivera no palácio de D. Brutamontes quando, depois de uma acesa discussão com o teixugo, o seguira até ao palácio do vice-rei. Na altura, o teixugo não havia suportado o odor deixado pela raposa nos seus aposentos e, por via disso, tinha-se apressado a visitar o lobo com o intuito de se queixar da raposa. Ao chegar ao palácio do vice-rei, a raposa instalou-se num local privilegiado, que lhe permitiu ver e ouvir toda a conversa do vice-rei com o teixugo.

Do que ouviu, percebera que o lobo estava a contas com uma dor de dentes insuportável ao ponto de, para minimizar as dores, ter amarrado um lenço à volta da queixada. Assim que o teixugo deixou o palácio, a raposa aproximou-se da entrada e chamou pelo lobo. Após os cumprimentos da praxe, a Salta Pocinhas logo se disponibilizou para o que o vice-rei entendesse ser necessário. O lobo, conhecedor dos dotes medicinais da raposa, implorou que o libertasse de tamanho sofrimento. De imediato a raposa lhe prescreveu a mesinha que terá considerado mais adequada, ou seja: tão depressa quanto possível, o lobo deveria colocar, sobre o seu real focinho, a parte interior da pele de teixugo bem fresquinha, ou seja, acabadinha de deixar o corpo. O vice-rei nada mais quis ouvir e, após ter pedido à raposa que o esperasse no palácio, partiu na peugada do teixugo que, de acordo com os seus cálculos, não poderia estar muito longe.

Sozinha no palácio, a raposa, depois de ter dado conta das fressuras e de outras iguarias existentes na despensa, saiu em direção à sua nova habitação. Entretanto o lobo, com dores cada vez mais intensas, sentindo-se enganado, ordenara caça à raposa através da proclamação lida pelo lince, já acima referida.

O tempo foi passando e a Salta Pocinhas continuava à solta, apesar do lobo tudo ter feito para a apanhar e castigar. Com a chegada do verão, altura em que a água secava em quase todos os cursos de água, o lobo montara guarda à única fonte que poderia matar a sede aos animais, naqueles meses quentes de verão, e esperou. Esperou, mas em vão. A Salta Pocinhas, apesar de nunca ter deixado de se deslocar ao riacho, conseguira sempre ludibriar o lobo usando disfarces tão inacreditáveis como originais. Primeiro disfarçou-se de bicho palheiro e mais tarde de lagarta das couves tendo, em ambos os casos, ridicularizado o lobo e sobrevivido à sede.

Entretanto, a Salta Pocinhas deixara de ser raposinha e passara a ser adulta. Um dia, já viúva, sentiu-se prisioneira na sua própria toca. Depois haveria que engendrar um estratagema capaz de fazer acionar e neutralizar a armadilha que fora colocada à entrada do seu covil pelo bicho homem. Para conseguir esse desiderato, a raposa voltaria a recorrer à mentira, prometendo o que sabia não poder vir a cumprir. Desta vez calhara ao bufo ser levado ao engano e ao gato bravo pagar com a vida a sua interesseira disponibilidade. Ambos caíram no engodo lançado pela raposa. Esta, mais uma vez, sairia ilesa graças à sua frieza e à sua matreirice. Porém urgia procurar algo para aconchegar os estômagos há muito vazios: a energia estava nos mínimos, a situação ia-se deteriorando à medida que os dias passavam, as forças davam sinais de colapso. Alguns abelhões, este ou aquele lagarto, tudo caça de pequeno porte era o que ia encontrando e o que ia evitando o pior. 

A certa altura, a raposa avistou uma lebre numa moita próxima. Ciente das suas debilidades, optou por desistir do confronto direto e decidiu pela “conversa fiada”. Se o sucesso tivesse acontecido, teria sido uma solução bem interessante. Porém a lebre, que já conhecia as manhas da raposa, não caiu nas suas cantilenas e acabou por se afastar.

Continuou caminhando, cada vez mais desanimada, na procura de alimento. De repente, pareceu-lhe ouvir vozes humanas e trotear de animal. Parou, apurou os sentidos, e constatou que as vozes vinham de local não muito distante. Posicionou-se de tocaia, bem atenta e em segurança. Eram dois homens que conduziam um asno que carregava, em ambos os alforges, vários cabritos e borregos dependurados e já sem vida. Correu e de um salto alcançou uma posição bem à frente dos caminhantes. Prostrou-se no chão, fez-se de morta e aguardou. Passado algum tempo, os dois homens chegaram ao local onde a raposa, imobilizada, ia soltando o seu cheiro pestilento. Estava morta e bem morta, admitiram os dois homens. Ainda assim, um deles, sabedor do valor que a pele lhes poderia render jogou o suposto cadáver para um dos alforges, que pendiam do dorso da azémola. Rapidamente a raposa recuperou do embate e, orientando-se no interior do alforge, depressa deu conta de um dos borregos. Em seguida, de estômago já bem aconchegado, saltou para a estrada segurando na boca um cabrito bem preso. Finalmente correu para o mato na direção do local onde os filhos ansiosos a esperavam.

Os anos foram passando e a raposa vira partir o raposão, seu companheiro de uma vida. Estava cada vez mais magra e mais fragilizada. A idade ia comprometendo, de forma progressiva, a sua agilidade e a sua destreza, dificultando-lhe os movimentos. Ainda assim, a matreirice e a astúcia, suas imagens de marca, haviam-se tornado, com o passar do tempo, mais apuradas, contribuindo decisivamente para a sua sobrevivência. Graças a esses predicados, ia ludibriando a bicheza mais miúda: visitas a capoeiras, captura de coelhos ou qualquer outra vítima mais encorpada há muito lhe estava vedada.

No inverno tudo piorava. O frio e a fome obrigavam a longos recolhimentos em letargia acentuada. Era importante não desperdiçar a pouca energia que lhe restava. Nestas alturas, voltava a recordar o passado, os bons tempos vividos com o raposão, a vida alegre e farta que tiveram, os folguedos então vividos, as caçadas bem-sucedidas… tudo lhe passava pela cabeça naqueles instantes. 

A vida já não era como outrora. Sentia-se abandonada por toda a bicharada: até as próprias raposas mais jovens, inexplicavelmente, se afastavam dela. Ainda assim, a sua fama de curandeira continuava a ser reconhecida. Por isso, sempre que alguma maleita atormentava a bicharada, logo a procuravam em busca do seu saber a das suas milagrosas mesinhas.

Foi o que aconteceu com a chegada do verão. Com ele veio uma praga de pulgas, que viria a atingir quase toda a comunidade. Perante tal sofrimento e tamanho desespero, lá foram pedir socorro à velha raposa. Eram filas de pacientes, à porta da Salta Pocinhas, aguardando a sua vez. Todos levavam, como meio de pagamento, fartos farnéis que a raposa de forma ordenada ia guardando na despensa. A todos prescreveu igual receita: “procura de um ribeiro, colocação de um pedaço de musgo nos dentes e mergulho na água, deixando o musgo de fora o quando baste”. A todos os pacientes indicou direções diferentes na procura do ribeiro e a todos avisou que a divulgação da receita significaria a perda da sua eficácia. Como sempre a mesinha funcionou. As pulgas, uma vez na água, tratavam de saltar para o musgo, abrigo privilegiado, onde podiam respirar.

Mais uma vez, a Salta Pocinhas havia conseguido os seus intentos. A sua despensa, por algum tempo, estaria abastecida.

Com o passar do tempo, a raposa percebeu que era de todo o seu interesse fazer um convénio com o lobo, seu velho e ingénuo inimigo de estimação. A força do lobo era importante para equilibrar as situações em que se via envolvida. Foi nesta fase que a Salta Pocinhas, depois de se ter banqueteado com um farnel que estava destinado a um grupo de trabalhadores, conseguiu convencer o lobo a levá-la às cavalitas. Antes, porém, enganara também as suas comadres raposas mais novas e, mais uma vez, comera as papas na cabeça ao lobo que, desconfiado, haveria de quebrar a aliança existente entre ambos.

Cada vez mais velhinha, continuava na luta pela sobrevivência. Virou pedinte, moça de recados, professora de raposinhos. Como professora, teve o cuidado de elaborar programa de ensino onde podemos realçar título e temas da primeira lição, “Os inimigos da Raposa” a saber: O inverno rigoroso, o bicho homem e os cães. Curiosa a maneira como ela define o bicho homem: “O homem é aquele bicho de duas pernas que parece que não tem medo de nada e tem medo de tudo”. Lamentavelmente a escola, que inicialmente estaria a decorrer muito bem, terminou numa grande tragédia. Os caçadores acabaram por localizar a aula em pleno funcionamento e terão dado conta toda a criançada.

Como se poderá imaginar, a raposa, depois da tragédia da escola, ficou abalada, desacreditada e mesmo perseguida. Porém, mais uma vez, irá ultrapassar essa fase menos positiva. A solução surgiu quando constatou o sucesso de dois pedintes humanos, andrajosos…. Resolveu então envolver-se com vestes femininas, fazendo-se passar por um bicho bem esquisito que, para seu próprio espanto, assustava os restantes animais. O efeito era tal que os animais chegavam a largar as presas, quando o tal “bicho papão” aparecia. Esta nova situação dera-lhe um grande fôlego. O facto de circular pelas ruas, protegida por aquele disfarce milagroso, viria a ser fundamental para a idosa Salta Pocinhas. Alarmada, a bicharada reuniu sob o comando do lobo, para decidir o que fazer perante tão perigosa e enigmática criatura. Mais uma vez, de barriga cheia, e perante a população assustada, promete dar caça ao “bicho papão” e devolver a paz à comunidade. Calmamente, consegue um acordo que lhe garante 50% de toda a pilhagem conseguida por qualquer dos animais da região. A Salta Pocinhas acabara de garantir a sua sobrevivência para o resto da vida.  Acabava a história, começava a lenda…

Ao longo de todos os capítulos do romance, outras tantas interessantes histórias são descritas pelo autor. Neste pequeno texto, demos conta de algumas dessas histórias com o objetivo de “convidar” o leitor a ler todo o romance. Se seguir o nosso conselho, será agradavelmente surpreendido pela beleza da construção das frases, pelo rico vocabulário utilizado e pelos deliciosos diálogos existentes entre as diferentes personagens do romance. Jovens e adultos terão oportunidade de se confrontar com a verdade da vida, com a realidade existente na natureza. Terão oportunidade de constatar situações de morte, de violência, de enganadores e de enganados, todos a lutar pela sua sobrevivência. Serão também alertados para as consequências de atitudes não democráticas, de poderes sanguinários e o perigo de comportamentos submissos.

Como exemplo do que escrevi anteriormente e para que o leitor disfrute da beleza do romance, transcrevemos duas linhas do texto onde o autor retrata a leveza com que a raposa se desloca no mato. Assim, podemos ler: “cuidadoso e lesto era o seu caçar, tão cuidadoso e lesto que não chegava a acordar o chão em que punha o pé”. Ou ainda a maneira como utiliza metáforas, para definir o modo como chovia: “Tilintava a chuva nas folhas das árvores, uma chuva miudinha e branquinha, dando a ideia de farinha peneirada pela Lua”. Outra interessante nuance, tem a ver com o modo como Aquilino joga com as palavras, quando caracteriza diferentes personagens, utilizando rimas sucessivas. Por exemplo, referindo-se à fuinha, escreve: a fuinha “luzidia, bravia, esguia como enguia, saltou do mirante”. Ou ainda, quando a raposa num diálogo com o teixugo se dirige a este, dizendo: “Ó animal ferino, mofino, ventas de pepino, não vale a pena zangar”. Finalmente, uma mensagem, de entre outras, que se pode extrair do romance: a força bruta jamais vencerá a inteligência, o saber ou a criatividade.

Por tudo o que escrevemos, mas principalmente porque lemos o romance, sugerimos que o leitor se apresse a iniciar a leitura desta obra de Aquilino Ribeiro, relembrando que aqui, neste pequeno ensaio, apenas afloramos pequenas passagens deste maravilhoso romance.

Fernando Amaral

Maio 2022

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