terça-feira, 30 de novembro de 2021

O Romance da Raposa (1.a parte: I, II)

 O ROMANCE DA RAPOSA (Capítulos I e II)

Versão reduzida

Já tinham passado três dias e três noites, desde que a Salta - Pocinhas saíra da toca dos seus progenitores, onde sempre vivera e crescera. Ali, na casa dos pais, sempre tivera conforto, segurança e algo para comer. A saída ocorreu, porque a raposinha tinha atingido a maioridade e, por isso, também os pais lhes lembravam, constantemente, que havia chegado a altura de “cair na estrada” e assumir a sua autonomia.

A verdade é que se encontrava, como é costume dizer-se, “no mato sem cachorro”, entregue a si própria, assustada, esfomeada e sem teto. Esta situação levou a que recordasse o covil paterno com muita saudade, chegando ao ponto, ainda que por momentos, de desejar o regresso “aos braços da sua mãe”. Por algum tempo lembrou o conforto, a segurança e a fartura que sempre existia na casa dos pais. Porém, reconheceu que nada havia a fazer. Sendo assim, “bola para a frente”: reuniu energias e avançou na procura de cama fofa e resguardada, algo para comer, enfim, alguém a quem pudesse tirar aquilo que lhe fazia falta.  

Depois desta “auto - injeção” de ânimo e de confiança, voltou à luta e retomou o caminho. Caminhava havia algum tempo, quando encontrou o irmão Pé Leve que por ali vagueava, tal como ela, na procura de sustento. Pé Leve era conhecido por ser um exímio caçador e um “danado salteador”. Do encontro nada resultou de substancial a não ser a notícia, dada pelo Pé Leve, de que o teixugo Salamurdo, pessoa bem instalada na vida, bondoso e cortesão da corte do vice-rei D. Brutamontes, teria “pegado pata” e, por isso, a sua despensa deveria estar bem recheada.

Continuou a Salta Pocinhas, agora com o pensamento fixo no solar do teixugo. Neste trajeto topou várias personalidades, todas elas súbditos de D. Brutamontes. A todas dava conta da frágil situação em que se encontrava, usando para isso os modos e o ar que considerava mais adequados a cada situação; ao mesmo tempo, a todos inquiria se sabiam onde morava o teixugo, que havia “pegado pata”. Quer a D. fuinha, quer o gato bravo, pouco ou nada adiantaram de interesse. Já o urso sábio dos saltimbancos, depois dos cumprimentos e dos salamaleques habituais, das lamúrias contra o húngaro (seu antigo dono) e da dificuldade em obter sustento, lembrou-se que conhecia o teixugo, personagem que a raposinha tanto procurava. A Salta - Pocinhas ouviu com toda a atenção as indicações do urso. Cada vez mais confiante, acreditando nas suas competências naturais, nas boas práticas e ensinamentos que os pais lhe proporcionaram, chegou finalmente à casa do teixugo. Era um autêntico solar, confortável, bem arejado e equipado, pasme-se, até tinha um sistema de fuga, pela parte traseira, de grande préstimo em caso de emergência.  

A raposinha, perante fosso tão apetecido, logo desenhou a estratégia adequada para conseguir pedaço de pata e, quem sabe, local para se acomodar e descansar. Cedo constatou que o ilustre cidadão se encontrava, bem confortável, nos seus aposentos interiores.

Houve uma troca de palavras, acesa, demorada e truculenta durante a qual a raposinha falou, acusou, implorou, saltou e tocou em tudo o que havia para tocar, nos espaços contíguos à habitação do teixugo. Com este expediente logrou espalhar os seus odores corporais, que sabia serem detestados pelo teixugo, por toda a mansão. Esta ação, premeditada, foi determinante para que o teixugo tomasse a decisão de abandonar os seus próprios domínios em busca de auxílio. E assim foi. Partiu de imediato para o palácio do vice-rei D. Brutamontes, onde iria queixar-se da “atrevida” e pediria pesado castigo para a “galdéria”.

Chegado ao Paço real, o teixugo começou por cumprimentar o lobo de uma forma submissa e subserviente. O lobo, que estava a contas com uma severa infeção na dentadura que tinha passado para a queixada, quase não o conseguiu ouvir. Por isso, com ar muito queixoso, implorou ao teixugo que rapidamente lhe encontrasse um cirurgião - dentista. Lembrou-lhe o teixugo que o Urso Mariana “metia colherada na medicina”. Não dando muita importância à proposta do cortesão, o lobo preferiu enfatizar o facto de ter o conhecimento de “que havia por aí raposas entendidas” na arte da cura. Apreçou-se o teixugo a desacreditar as raposas em geral e, em particular, acusar a Salta - Pocinhas de “não o ter deixado dormir em paz”, tal o insuportável odor que largava quando, recentemente, o incomodara na sua residência. O lobo concordou em castigar a raposinha, mas exigiu que, antes de tudo, lhe trouxesse o urso e depois, só depois, “a bem ou a mal”, a raposeta. Antes de abalar no cumprimento das determinações do vice-rei, o teixugo retirou as bolotas que trouxera na taleiga e obsequiou o lobo com as mesmas. O lobo agradeceu a oferta, mas foi dizendo que pouco gostava de bolotas, acrescentando, que “bolotas e pão-de-ló, come-as tu e a tua avó”.  Justificou-se o teixugo argumentando que se tivesse “pilhado pata”, como lhe buzinara a Salta Pocinhas, “lha traria da melhor vontade”.

O vice-rei não gostou muito da oferta e, num gesto de abastança, mostrou ao teixugo a despensa onde se podia ver “metade dum bezerrão, além da fressura dum cordeiro”. Dito isto, ordenou ao teixugo que zarpasse - “fosse num pé e viesse noutro” - acompanhado pelo urso.

A Salta - Pocinhas, que havia seguido o teixugo até ao covil do lobo, ao chegar ao paço colocara-se, estrategicamente, numa posição de tal modo privilegiada que lhe permitiu ver e ouvir toda a audiência do vice-rei ao teixugo.

Interrogando-se sobre o modo como deveria lidar com a situação, analisando os prós e os contras, a Salta - Pocinhas decidiu bater à porta da residência do lobo. Logo que o lobo apareceu, tolhido de dores, a raposa foi dizendo que a prima fuinha lhe falara dos “grandes incómodos” que atormentavam sua excelência. Por isso, vinha oferecer os seus préstimos (começando de imediato a rezar à virgem). O lobo, que ainda não se tinha esquecido do que ouvira falar sobre os conhecimentos medicinais das raposas, perguntou à Salta - Pocinhas se conhecia remédio para o seu mal.

A raposa respondeu afirmativamente lembrando ao lobo que o falecido pai de D. Brutamontes, no passado, fora tratado pela sua avó “por causa de um dente de siso”.

- E que lhe receitou? - perguntou o lobo.

- “Mandou-lhe pôr sobre o carão, na parte dorida, a pele dum teixugo”, mas terá que ser acabadinho de esfolar”- respondeu-lhe a raposa, com ar matreiro.

O lobo não teve dúvidas e decidiu partir em busca do “remédio abençoado”.  Antes, porém, ordenou que a raposinha aguardasse pelo seu regresso ali no paço, advertindo-a de que não seria meigo, caso ela o tivesse enganado.

Assim que se viu sozinha no palácio, a raposa não perdeu tempo e atirou-se à fressura e às outras iguarias existentes na despensa. Depois, finalmente, de barriga cheia, com toda a calma, dirigiu-se para “o solar do teixugo – o seu solar”, que ela empestara com o seu cheiro.

 

 

 

ROMANCE DA RAPOSA (Capítulos I e II)

Introdução

A celebração do Natal de 1924 estava próximo. Ele lembrava-se como se fosse hoje. Com os seus dez anos, já a caminho dos onze, não podia esquecer as muitas histórias que ouvira, bem acomodado nos joelhos do pai. A heroína era, invariavelmente, uma raposa sorrateira, ardilosa, meiga e doce, a Salta - Pocinhas. Na abordagem das diversas situações com que se deparava, a raposeta tudo fazia para se manter de barriga cheia e corpo descansado. Se para isso fosse necessário assaltar galinheiros, roubar coelhos, patos ou perus ou ainda abater toda a espécie de animais, pequenos ou grandes, pouco ou nada lhe importava. Os aldeões, perante os efeitos das suas incursões, bem tentavam todo o tipo de esperas e armadilhas, mas raramente tinham sucesso. E se as coisas se tornassem mesmo difíceis, a Salta - Pocinhas recorria, sem qualquer hesitação, a trapaceirices e expedientes tais, que assustava qualquer um. Nessas ocasiões, nem o colo protetor de seu pai era bastante para refrear o medo que dele se apoderava. Imaginem, chegou ao ponto de se apropriar do aconchegado solar dum membro da corte, o teixugo D. Salamurdo, e até de ludibriar o vice-rei, o lobo D. Brutamontes, soberano incontestado e reconhecido por todos os animais da região. Eram na verdade histórias que o encantavam e que nunca esquecera. No final de cada história ficava num verdadeiro suspense, com muita ansiedade, tal a vontade de que o tempo corresse, para mais rápido voltar ao colo do pai.

As personagens que entravam nas histórias, que o pai lhe contava, eram todas reais e bem suas conhecidas. Todas tinham voz, a todas era dado palco, “para que melhor manifestassem o que verdadeiramente são.” Contrariamente ao que ocorria nos contos, que habitualmente contavam às crianças, nestes não entravam fadas, duendes, gigantes, princesinhas nem qualquer outra coisa sobrenatural. As personagens principais vestiam bonitos fatos em pelo de todos os tons. Alguns exibiam as suas cores garridas e todos conversavam e dialogavam entre si. Como personagens principais, além da Salta - Pocinhas e família, havia o teixugo D. Salamurdo, o lobo D. Brutamontes, o Urso Mariana, D. Fuinha e o Corvo Vicente, todos dotados de habilidades e competências de pasmar. Depois, como personagens secundárias, sem direito a tomar a palavra, apareciam gafanhotos, galinhas, patos, coelhos, chacais, insetos e outros.

Sempre que lia o romance que o pai escrevera e lhe oferecera naquele Natal, divertia-se e batia palmas de agradecimento. Ainda assim, estava bem ciente que, por muito que fizesse, jamais conseguiria recompensar o pai por toda a sua obra e por todo o carinho.

Aníbal sempre trabalhou no sentido de algo fazer para que a imagem do pai, a sua mensagem, a sua obra, as suas visões do mundo, não fossem esquecidas pelas gerações vindouras. Por isso, foi decerto, com enorme satisfação, que naquele dia 25 de julho de 1988, em Moimenta da Beira, anunciou publicamente a criação da Fundação Aquilino Ribeiro.

Capítulos I e II

Versão mais longa

Encontrava-se a Salta Pocinhas, só, naquela densa floresta, onde o arvoredo de grande porte, crescia e competia, entre si, na esperança de alcançar a luz e o calor do sol de maneira mais direta e mais intensa. Entre as suas copas cerradas, rompia a luz indispensável à vida dos muitos arbustos que, com os seus caules lenhosos entrelaçados nas ramagens, dificultavam a progressão de quem por ali se aventurasse. Junto ao solo, folhagem diversa e inúmeras espécies de musgos progrediam, rastejavam e cobriam o terreno arenoso e as extremidades de pequenos rochedos e pedregulhos por ali existentes. Protegidos por todo aquele emaranhado de vegetação rasteira, viviam inúmeras comunidades de animais, múltiplas espécies de seres vivos de todos as formas e tamanhos. Todos eles travavam uma luta frenética na procura de resguardo e alimento, ao mesmo tempo que mantinham vivas verdadeiras estratégias de autodefesa contra a voracidade de outros animais. Era uma luta impressionante que todos travavam pela sua própria sobrevivência.

A raposinha Salta-Pocinhas caminhava “havia três dias e três noites” desesperada, faminta e muito desanimada. Era a primeira vez que se encontrava entregue a si própria, na procura de local para dormir e de alimento para sobreviver. É verdade que todos os animais, especialmente as raposas, nascem com características e habilidades próprias que lhes conferem competências bastantes para enfrentar as adversidades esperadas nos terrenos onde se movem. No caso da Salta - Pocinhas, a esses dotes naturais, acresciam os ensinamentos e as boas práticas que lhe haviam sido transmitidas pelos progenitores, durante a juventude. Sorrateira, ardilosa, meiga, sagaz, na abordagem das diversas situações com que se deparava, a Salta - Pocinhas tudo iria fazer para manter a barriga composta e o corpo descansado. Se necessário fosse, assaltaria currais, galinheiros, coelheiras, tomaria tocas alheias, ludibriaria quem possuísse algo importante para a sua sobrevivência. A inexperiência era o seu único ponto fraco e marcava o seu estado de espírito no momento.

Por isso, e apesar de possuir qualidades bastantes para ter sucesso, naquela altura deslocava-se desanimada “farejando, batendo mato, sem conseguir deitar a unha a outra caça além duns míseros gafanhotos, nem atinar com abrigo em que pudesse dormir um soninho descansado”.

Esta situação de visível fragilidade tocou o seu ego profundamente e transportou-a, em pensamento, até ao covil acolhedor, seguro e farto, onde nascera e vivera durante todos aqueles anos. Que saudades e quanta vontade tinha de voltar para os braços da sua mãe! O seu pensamento continuou a deambular, fixando-se agora no terreiro. Ali se sentava com os pais, diariamente, falando sobre temas diversos. O terreiro, em forma circular, era bordejado por denso arvoredo onde, bem simulada, existia a entrada que conduzia ao covil da família. Bem se lembrava da boa vida que tinha tido por ali e na segurança que sentia naquele local. Entrou a seguir no covil propriamente dito e percorreu o grande túnel de acesso às divisões interiores. Lá estava a sua caminha “mais quente e segura de que em castelo de rei”. E, mais à frente, a despensa onde “nunca faltava galinha, quando não fosse fresca, de conserva, ou então coelho bravo, acabado de degolar”. De regresso à clareira, de regresso à intensa luz do dia, logo descobriu o “ar trocista do mestre Vicente”, empoleirado numa árvore frondosa que o protegia. Concentrou-se no local onde regularmente ouvia as preleções dos pais. Frente aos progenitores, sentava-se a ouvir os avisados conselhos, cujos conteúdos, ultimamente, iam sempre no sentido de a encorajar a ganhar a estrada e a assumir a sua independência. Frases como a que se seguem eram o prato do dia: “Salta-Pocinhas, minha filha, tens de procurar outro ofício” ou “fica sabendo: quem não trabuca não manduca” ou ainda “estás na idade de te conduzir por tua cabeça”.

Também o pai velho, “um raposão de rabo pelado”, ao mesmo tempo que “se espreguiçava entesando e voltando a entesar um longo e descarnadíssimo pernil”, tecia elogios ao Pé-Leve com frases do tipo: “Teus irmãos por aí andam ganhando o pão” ou lembrando um grande feito do Pé-leve quando “bifou ao padre prior o rico galo galaroz” tendo proporcionado uma comezaina geral, “um fartote”. De tudo isto ela se lembrava e por tudo isso, tinha de continuar. Afinal acabara-se “o que era doce”.

Voltou à realidade e viu-se de novo na floresta entregue a si própria. Concentrou-se em aplicar toda a sua atenção no que considerava essencial, ou seja, sobreviver com qualidade aplicando todas as suas armas naturais, todo o seu génio, toda a sua paciência e capacidade de sofrimento.   

Entretanto a noite caíra, a floresta mostrava agora outra roupagem ainda mais cinzenta. O luar dificilmente conseguia disfarçar a escuridão e ela já sentia no corpo os efeitos da chuva, apesar de “miudinha de molha tolos”. Num caminhar lesto, mas cuidadoso, de tal modo que “não chegava a acordar o chão em que punha o pé”, ia sempre procurando e farejando algo com que pudesse enganar o estômago vazio. Porém, comida consistente, “láparo embezerrado, rã ou besouro que fosse”, nada encontrara.

Neste caminhar encontrou o irmão Pé Leve, aquele sobejamente elogiado pelo velho pai.  Depois dos cumprimentos de cortesia, a raposinha confessou ao irmão o seu estado de fraqueza extrema, tendo em mira, eventualmente, conseguir algo para comer. O raposo não se mostrou muito interessado na conversa e, rapidamente, seguiu o seu caminho. Mas antes de abalar, talvez para tranquilizar a sua consciência, deixou a ideia de que o teixugo D. Salamurdo, personagem muito amiga de ajudar os outros, havia pilhado uma pata.

A partir daí, sempre procurando, farejando e vagueando, foi encontrando outros habitantes da floresta e a todos foi saudando, tentando obter alimento e perguntando se sabiam da morada do tal teixugo Salamurdo que, pelos vistos, “teria pegado pata”. Tal como ocorreu com o irmão Pé Leve, também a fuinha não lhe deu grande troco e rapidamente desapareceu após lhe ter indicado a direção da casa do teixugo.

Continuou a Salta - Pocinhas na direção indicada, sempre com os mesmos cuidados e sempre procurando algo para comer. A certa altura, apercebeu-se da presença de alguém que logo identificou como sendo o gato bravo. O mesmo ar simpático, as mesmas perguntas da parte da raposinha. Muita animosidade, algumas queixas e pouca vontade de diálogo da parte do gato bravo, mais preocupado em manter-se emboscado “à espreita de noitibós”. Face à atitude do gato,  a raposinha “virou costas ao malcriado”.

Prosseguiu o seu caminho e logo topou, junto a um castanheiro, uma personagem bem avantajada que, num primeiro momento, lhe causou calafrios ao ponto de se lhe eriçar o pelo. Porém, focando-se melhor, percebeu tratar-se do urso sábio dos saltimbancos, que andava fugido do húngaro, seu patrão no circo. Mais tranquila, após ter estudado o terreno e garantido - “se preciso fosse” - uma linha de fuga confortável, dirigiu-se para o local onde se encontrava o urso. Cumprimentaram-se, com grande simpatia e com palavreado de ocasião.

- “Ora viva o tio Mariana! Então a tomar o fresco da noite”.

- “Seja bem-vinda a minha flor. Ando a ver se os castanheiros já botam”.

- “Porque não trepa arriba?”

- “É um tronco muito grosso”

- “E essa bizarria?”

- “Como há-de ir um pobre desterrado?!”

O urso vivia atemorizado com a hipótese de vir a ser apanhado pelo antigo dono, “um húngaro de má morte”. Odiava o trabalho que fazia no circo: “bailar ao som dum pandeiro e do pífaro para divertimento dos basbaques”.

Como sempre, a Salta - Pocinhas queixou-se que estava esfomeada e que procurava o reduto do teixugo na esperança de lhe pegar a pata que, supostamente, ele havia pegado. Na despedida, o urso ainda esboçou abraçar a raposinha que, perante tal tentativa, lhe respondeu “- Um abraço tó-rola! Abraço de urso, já dizia Salomão, é pior que beijo de cão”.

Perante esta graçola, o urso seguiu caminho. Já tinha andado algum tempo, quando se lembrou que, afinal, conhecia o teixugo e também o local onde vivia. Só poderia ser aquele “bicho ronceiro, passeiro, mazzorreiro, perna cambada”. Com esta certeza, falando do local onde já se encontrava, o urso deu indicação pormenorizada da morada do cortesão, seguindo depois, cantarolando, para lugar incerto onde o braço do húngaro não lhe pudesse chegar.

A Salta - Pocinhas caminhou durante algum tempo, seguindo as indicações do urso Mariana. Porém, o cansaço e o desnorte foram-se instalando. Deixara de ter certezas sobre a localização da toca do teixugo. Mas, num repente, deparou com algo que lhe trouxe ânimo e esperança. Numa clareira, bem denunciada e batida, vislumbrou uma entrada de covil, protegida pelo tronco de uma árvore centenária que permitia gozar a frescura no verão e amenizar os dias frios de inverno. Para que não faltasse arejamento, no interior do covil, existiam “frestas” estrategicamente colocadas. Pelas traseiras, existia um orifício de fuga que servia para “dar às de vila-diogo” sempre que, numa emergência, fosse necessário. O que estava diante dos seus olhos era na verdade uma autêntica mansão. Por isso, de olhos bem esbugalhados, a Salta -Pocinhas percebeu que estava, finalmente, “diante do solar do teixugo”.

Numa primeira fase, ensaiou a habitual dose de chamamentos e lamúrias, sempre debaixo de uma chuvinha fraca, mas incomodativa. Como não obtivesse resposta, voltou à carga, agora num tom mais choroso e submisso. Como continuasse sem resposta, optou pelo uso de palavreado mais agressivo e injurioso do tipo “Pai teixugo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Larga a pata!...A pata!!!”. Ainda assim, nada demoveu o cortesão que se manteve silencioso. Pensou invadir a mansão, mas depressa desistiu da ideia, tendo em conta o que sabia do teixugo no que dizia respeito às suas capacidades e à sua força. Bem sabia que o teixugo “tinha garras de aço que apertavam como turqueses, dentes possantes que uma vez ferrados não abriam mais”. Por essas razões, desistiu de uma invasão pela força.

Em alternativa, atuou de um modo mais avisado, com mais calma e precisão. Abeirou-se de uma fresta existente, por onde entrava a luz que iluminava a toca. Ficou perplexa com o que viu. Sobre uma folhagem fofa e acolhedora, estava o teixugo sentado e bem confortável. O danado era bem anafado e vestia “jaquetão cor de café, topete e peitilho alvos de neve”. Porque achou ser o tom mais adequado naquela situação, voltou à primeira fase, isto é, à fase das lamúrias e da submissão. O teixugo persistia em não responder, mas a raposinha que nunca quebrou a guarda, notou que o cortesão ia “abrindo as pálpebras, sacudindo as orelhas, soprando, fungando”, enfim, dando nota de grande desconforto. Achou a Salta - Pocinhas que fazia sentido tornar às lamúrias e daí, clamou:

      – “Ó, meu rico senhor!”

Mas o teixugo não esperou pelo final da lamúria ensaiada pela raposa e respondeu num tom áspero, tentando imitar o som típico das raposas.

- Não tenho nada que dar, mas, tivesse eu galinhas ou patas aos montes, sob pena de para aí apodrecerem não eram para você que vem empestar-me a casa”, com o seu mau cheiro.

Continuou o teixugo a queixar-se do mau cheiro da raposa, aconselhando-a a lavar-se e a libertar-se da “catinga”, sempre que se aproximasse de casas de gente nobre. A raposa, apesar de reconhecer que a natureza não a havia prendado de odores perfumados, sentiu-se ofendida no seu ego, embora reconhecesse ser um bicho com agrados reconhecidos (“airosa, briosa, graciosa”).

Por tudo isso subiram de tom os insultos e a discussão entre ambos. A certa altura o teixugo, indisposto, não aguentando mais o cheiro da raposa, decidiu rumar até ao covil real do lobo D. Brutamontes, vice-rei daqueles domínios. Iria queixar-se da “atrevida” e pedir pesado castigo para a “galdéria”, concluira.

Entretanto, a Salta – Pocinhas, preocupada com a brutalidade do lobo e ciente das intenções do teixugo, decidiu segui-lo até à toca do vice-rei. Deste modo conseguiria, em tempo real, tomar as decisões mais adequadas, engendrar os esquemas que melhor defendessem os seus interesses. Seguia com todos os cuidados “nariz à flor da terra a tomar os ventos” como se se movimentasse sobre nuvens. Já o teixugo, menos ágil, carregado e com um “andar saltitante”, avançava de forma mais vagarosa.  

A certa altura, a raposinha avistou o teixugo. Lá ia com uma taleiga amarrada na ponta de um varapau, caminhando de vara ao ombro, rumo à toca do lobo. No interior da taleiga seguiam as oferendas destinadas ao vice-rei, as quais serviriam para obter “as boas graças” do lobo e, ao mesmo tempo, convencê-lo a impor castigo severo à raposinha.  Não era fácil, para qualquer cidadão daquele reino, atinar com a toca real. Porém, para o teixugo, que a visitava com frequência na qualidade de cortesão, era bem simples.

Num local íngreme e assustador, com barrocas amontoadas, pedregulhos disformes dispostos sem qualquer ordem, lá estava o Paço do lobo D. Brutamontes.  A falta de qualquer arbusto, que por ali se recusara a crescer, completava uma visão assustadora. Qualquer bicho mortal, bem-avisado e minimamente prudente, só por razões imperativas por ali pensaria passar.

Entretanto o cortesão chegara ao destino. Pôs-se à vontade, libertou-se da carga que transportava e alinhou vestes e bigode, de modo a mostrar-se com dignidade perante sua excelência.  

Num tom submisso - “brando e adocicado”- dirigiu-se ao vice-rei:

- Ó meu senhor!....meu senhor!

O lobo, que estava a contas com uma forte dor de dentes, da qual resultava um feio inchaço nos queixos, respondeu zangado e autoritário.

- Quem ousa incomodar o vice-rei, a hora tão imprópria?

- “É o teixugo, senhoria; é o teixuguinho Salamurdo, vosso leal servidor

O lobo autorizou que o teixugo entrasse, mas logo o avisou que a audiência teria de ser curta, já que o seu estado de saúde não era o melhor.

Entretanto a raposinha, manhosa e eficiente, já havia chegado à toca do lobo. Ali chegada, procurou local que lhe permitisse ver e ouvir a conversa entre o lobo e o teixugo. Conseguida a posição ideal no terreno, imobilizou o corpo, relaxou os músculos e afinou a vista de forma a otimizar a recolha de informação. Depois foi ver e ouvir…

Logo de início, e após os salamaleques da ordem, o lobo apressou-se a relatar ao teixugo os males que o consumiam de momento. Um dente podre passara-lhe o mal para os queixos. Disso já se tinha apercebido o teixugo, assim que viu o focinho real albardado com um lenço atado sobre a cabeça, comprimindo os queixos. O lobo, cheio de dores, foi dizendo ao visitante que tudo daria por um bom cirurgião que lhe acalmasse tamanho sofrimento.

Reagiu o teixugo, prontificando-se em procurar e trazer ao Paço o urso sábio Mariana que, assegurava, se dizia entendido na cura de todas as maleitas.

O lobo, em vez de anuir à proposta do cortesão, deu-lhe conta de que ouvira falar existirem raposas entendidas na arte de bem curar. O teixugo, ao ouvir semelhante ideia, logo aproveitou para acusar as raposas em geral e dirigir a conversa para a queixa que o trouxera ao covil do lobo. Nesse sentido, acusou a raposinha de o ter incomodado na sua própria casa, enfatizando o facto de o mau cheiro da malvada não lhe ter permitido o justo descanso. Frisou ainda de que a Salta - Pocinhas, ao esfregar-se em tudo por onde passava tornara o ar irrespirável e, portanto, a casa sem condições para o descanso. Por isso, rogava a sua excelência, que decretasse interditos a todas as raposas, os terrenos próximos da sua habitação. Acrescentando que, no caso dessa proibição não ocorrer, embora contra a sua vontade, teria que mudar de residência e abandonar a região que estava debaixo do controlo do vice-rei.

O lobo não gostou do jeito como o teixugo a ele se dirigiu, argumentando que o teria feito com “rópia” excessiva. De qualquer modo, ordenou que lhe trouxesse, com urgência, o urso sábio à sua presença e em seguida fizesse o mesmo com a raposinha. Acrescentou ainda o Brutamontes que, caso o urso lhe restituísse a saúde, não iria ser parco em recompensas e honrarias.

Agradeceu o teixugo com abundantes vénias e reverências, ao mesmo tempo que ia desamarrando o baraço que apertava a taleiga que trouxera de casa. Tratava-se duma mão cheia de bolotas que apanhara do carvalho à sua porta plantado. Por isso, com todo o gosto e reverência, lhas oferecia para o pequeno-almoço real. O lobo não ficou muito entusiasmado com a oferta. Assim, logo que se apercebeu que o presente eram bolotas, arrematou, “aprecio muito a delicadeza, mas lá bolotas, como pão-de-ló, come-as tu e a tua avó”.

Desfez-se o teixugo em desculpas, assegurando que, caso tivesse “pilhado pata” como a velhaca lhe enchera os ouvidos, a oferta seria diferente.

O lobo ouviu e sentiu necessidade de lembrar ao cortesão que, em sua casa, havia abundância e por isso nunca faltava carne. Ao mesmo tempo que falava, apontava para a despensa, onde se podia ver “metade dum bezerrão, e fressura de cordeiro” em abundância.

O teixugo encaixou a reprimenda e lá foi à procura do urso, prometendo que “uma corça não correrá mais veloz”.

Bem posicionado que estava, como anteriormente explicámos, a raposinha tudo ouviu e muito viu. Daí que, dada a quantidade de informação de que agora dispunha, passou a “desenhar” a situação, pensar sobre a mesma e decidir o melhor a fazer. Sobre a mesa estavam várias realidades, a saber:

a)      No interior do palácio, sobre ramos frescos, jazia abundante fressura de borrego e metade dum bezerro.

b)      Era urgente tratar das maleitas do lobo.

c)       Existia a probabilidade de o lobo D. Brutamontes pôr em prática a sua bestialidade no caso de contrariado.

d)      Entretanto, o teixugo tinha a missão de levar a raposa ao lobo para que fosse castigada.

e)      A chuva continuava a cair e a fome cada vez mais minava as suas entranhas.

f)       Sentia, à medida que o tempo passava sem alimento, que as suas forças iam-se esvaindo e as suas capacidades começavam a ficar seriamente comprometidas.   

Decidiu! Perder ou ganhar, não havia alternativa! E deu consigo a bater à porta da mansão do lobo D. Brutamontes.

Assim, ainda o lobo remoía a conversa que havia tido com o teixugo e já alguém o tornava a incomodar, precisamente numa altura em que, cada vez mais dorida, a real queixada o atormentava com mais intensidade. Ainda assim, o lobo resolveu atender a nova visita e, com ar de poucos amigos, apareceu à porta do palácio.

A raposinha, utilizando o seu ar mais meloso e mais submisso, lá foi dizendo que a sua prima fuinha lhe falara na doença, que atormentava sua excelência. Resolvera, portanto, aparecer no paço, não só para saber da saúde do vice-rei, mas também para colocar-se à sua disposição para o que bem aprouvesse.

O lobo, que ainda não se tinha esquecido do que ouvira falar sobre os conhecimentos medicinais das raposas, perguntou à Salta Pocinhas se conhecia remédio para o seu mal.

A raposa, carregada de matreirice, respondeu que sim, lembrando ao lobo que o lobão, seu falecido pai, no passado, fora tratado pela sua avó “por causa de um dente de siso”.

- E que lhe receitou? - perguntou o lobo.

- “Mandou-lhe pôr sobre o carão, na parte dorida, a pele dum teixugo”, mas terá que ser acabadinho de esfolar” - respondeu-lhe a raposa, com ar matreiro.

O lobo não teve dúvidas e decidiu partir em busca do “remédio abençoado”. Antes, porém, ordenou-lhe que aguardasse pelo seu regresso ali, no paço. E, já de saída, advertiu-a, dizendo-lhe que não seria meigo, caso ela faltasse à verdade.

Assim que se viu sozinha naquele palácio, a raposa não perdeu tempo e atirou-se à fressura e às outras iguarias existentes na farta despensa. Depois, finalmente, de barriga cheia, com toda a calma, dirigiu-se para “o solar do teixugo – o seu solar”, que ela empestara…

Fernando Amaral

Novembro 2021

                                                                    

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