quarta-feira, 17 de março de 2021

Inéditos, por Elita Guerreiro

A CASA DA RAIA

(CONTO)

No meio da paisagem agreste, entre a pequena aldeia e a fronteira

Espanhola, aquelas ruínas, duma antiga casa, davam que pensar, muito

seriamente, nas voltas que a vida dá ou que nós damos na vida!

Que raio de ideia aquela de construir uma casa no meio daquele deserto!

Pouco restava já do que fora outrora! O matagal tinha tomado conta das

paredes de adobe e do telhado nada restava. O silêncio quebrado de vez

em quando pelo grito de alguma ave era impressionante! Quem diria

que ali brincaram crianças barulhentas e irrequietas? E que o único grito

que se ouvia mais forte era o assobio do pastor, juntando o rebanho

de ovelhas, com a ajuda do enorme cão de guarda? Ou a Mãe chamando as

crianças para as refeições? Oito quilómetros. Era o que estava escrito a preto

no marco branco que servia  de linha divisória, quer para a aldeia, quer para

 a fronteira Espanhola. Oito quilómetros para cada lado. Tudo em redor

eram serras, matagais e rochedos. Mas a casa da Raia tinha vida! Galinhas que

ciscavam e cacarejavam o dia todo, o rumorejar da água da fonte, os chocalhos das ovelhas e os folguedos das crianças, que cresciam fortes e saudáveis. Eram tempos difíceis! A casa da Raia dava abrigo aos contrabandistas que cruzavam a fronteira, nas noites de Inverno, que ali era rigoroso. Junto à lareira, um naco de pão, uma caneca de café quente e bem forte e lá vinham as histórias de fugas aos carabineiros do lado de lá, da guarda fiscal do lado de cá e dos lobos, que os perseguiam ferozes e esfomeados, como se soubessem que os contrabandistas não podiam usar armas para se defenderem! Por estranho que pareça, eram os guardas de ambos os lados, que por vezes afugentavam os animais, confundindo-os no

escuro, com as sombras dos contrabandistas. Uma rajada e lá iam eles, trotando serra acima, de olhos faiscantes e uivando. Uma matilha que

metia medo! Lá no alto, o grande chefe da matilha, de pé sobre o rochedo,

soltava um uivo aterrador! Mas nas voltas da vida, o contrabando deixou de fazer sentido. As crianças cresceram e para que pudessem frequentar a

escola, a casa da Raia viu-os partir com os Pais e para ali ficou triste e abandonada. E mais uma vez a vida modificou tudo! Os filhos trocaram a pequena aldeia por outra em nada maior, mas do outro lado da fronteira.

Velhos,curvados pelos anos de muita labuta, para lhes dar uma vida melhor

que a sua, pouco a pouco deixaram de ter forças para lutar por um novo

destino e um após outro levando consigo a saudade dos filhos e da sua Raia,

deixaram a vida. Toda a aldeia se perguntava, sabendo que não havia resposta:

-  Valeu a pena um tão grande sacrifício?

 São as voltas que a vida dá, ou as voltas que damos na vida! E a ingratidão e a desumanidade, infelizmente, fazem parte dessas mesmas voltas. Elas lá estavam, as velhas ruínas da casa da Raia! Cobertas de silvas de tojo e de toda a qualidade de mato, junto à fonte sem água, onde o vento circula lembrando as brincadeiras das crianças, o barulho dos chocalhos e as histórias dos contrabandistas.

De vez em quando, o vento parece cantar uma canção de saudade!

Que raio de sítio para se construir uma casa no meio do nada! O marco branco

de letras pretas ainda lá está. Mas as letras já estão quase desfeitas: o branco

que o revestia amareleceu com o tempo. Marca os mesmos quilómetros, mas

Já não há fronteira, nem carabineiros, nem guarda fiscal.

A casa da Raia, tal como os antigos donos, morreu de solidão!

 

Elita Guerreiro /8/9/2020

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