A CASA DA RAIA
No meio da paisagem agreste, entre a
pequena aldeia e a fronteira
Espanhola, aquelas ruínas, duma antiga
casa, davam que pensar, muito
seriamente, nas voltas que a vida dá ou
que nós damos na vida!
Que raio de ideia aquela de construir
uma casa no meio daquele deserto!
Pouco restava já do que fora outrora! O
matagal tinha tomado conta das
paredes de adobe e do telhado nada
restava. O silêncio quebrado de vez
em quando pelo grito de alguma ave era
impressionante! Quem diria
que ali brincaram crianças barulhentas
e irrequietas? E que o único grito
que se ouvia mais forte era o assobio
do pastor, juntando o rebanho
de ovelhas, com a ajuda do enorme cão
de guarda? Ou a Mãe chamando as
crianças para as refeições? Oito
quilómetros. Era o que estava escrito a preto
no marco branco que servia de linha divisória, quer para a aldeia, quer para
a fronteira Espanhola. Oito quilómetros para
cada lado. Tudo em redor
eram serras, matagais e rochedos. Mas a
casa da Raia tinha vida! Galinhas que
ciscavam e cacarejavam o dia todo, o
rumorejar da água da fonte, os chocalhos das ovelhas e os folguedos das
crianças, que cresciam fortes e saudáveis. Eram tempos difíceis! A casa da Raia
dava abrigo aos contrabandistas que cruzavam a fronteira, nas noites de
Inverno, que ali era rigoroso. Junto à lareira, um naco de pão, uma caneca de
café quente e bem forte e lá vinham as histórias de fugas aos carabineiros do
lado de lá, da guarda fiscal do lado de cá e dos lobos, que os perseguiam
ferozes e esfomeados, como se soubessem que os contrabandistas não podiam usar
armas para se defenderem! Por estranho que pareça, eram os guardas de ambos os lados,
que por vezes afugentavam os animais, confundindo-os no
escuro, com as sombras dos contrabandistas.
Uma rajada e lá iam eles, trotando serra acima, de olhos faiscantes e uivando. Uma
matilha que
metia medo! Lá no alto, o grande chefe
da matilha, de pé sobre o rochedo,
soltava um uivo aterrador! Mas nas
voltas da vida, o contrabando deixou de fazer sentido. As crianças cresceram e
para que pudessem frequentar a
escola, a casa da Raia viu-os partir
com os Pais e para ali ficou triste e abandonada. E mais uma vez a vida
modificou tudo! Os filhos trocaram a pequena aldeia por outra em nada maior,
mas do outro lado da fronteira.
Velhos,curvados pelos anos de muita
labuta, para lhes dar uma vida melhor
que a sua, pouco a pouco deixaram de
ter forças para lutar por um novo
destino e um após outro levando consigo
a saudade dos filhos e da sua Raia,
deixaram a vida. Toda a aldeia se
perguntava, sabendo que não havia resposta:
-
Valeu a pena um tão grande sacrifício?
São as voltas que a vida dá, ou as voltas que
damos na vida! E a ingratidão e a desumanidade, infelizmente, fazem parte
dessas mesmas voltas. Elas lá estavam, as velhas ruínas da casa da Raia!
Cobertas de silvas de tojo e de toda a qualidade de mato, junto à fonte sem
água, onde o vento circula lembrando as brincadeiras das crianças, o barulho
dos chocalhos e as histórias dos contrabandistas.
De vez em quando, o vento parece cantar
uma canção de saudade!
Que raio de sítio para se construir uma
casa no meio do nada! O marco branco
de letras pretas ainda lá está. Mas as
letras já estão quase desfeitas: o branco
que o revestia amareleceu com o tempo.
Marca os mesmos quilómetros, mas
Já não há fronteira, nem carabineiros,
nem guarda fiscal.
A casa da Raia, tal como os antigos
donos, morreu de solidão!
Elita Guerreiro /8/9/2020
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