sábado, 16 de junho de 2018

Para uma análise do conto "Cegarrega", in Bichos, Miguel Torga

“CEGARREGA”
“CEGARREGA” é mais um conto de Miguel Torga carregado de Poesia e entoando um hino à Vida, à Alegria de Viver, apesar de todas as dificuldades e problemas com que todos nos deparamos pelo caminho.
Aliás, as próprias dificuldades e obstáculos que sempre surgem na tarefa de Viver, contribuem para aumentar essa Alegria, pois o esforço dispendido e o sofrimento que o acompanha constituem degraus numa escalada de vitórias que amplificam a alma e a tornam cada vez mais capaz de apreciar todos os cambiantes da Alegria plena, sempre inatingível e cada vez mais profunda.
A cigarra, como todo o ser vivente, desde o seu nascimento, atravessa fases obscuras em que se sente perdida, confusa, não sabe quem é nem o que pode vir a ser.
Não tem consciência do cosmos, não conhece a lei inexorável da Natureza, parece-lhe que não há lugar para ela no universo imenso.
Resta esperar com coragem, não desanimar nunca, apoiada no Sonho e no Amor envolvente e universal.
Tendo atravessado as primeiras fases das metamorfoses, sente que a sua ânsia de subir vai aumentando gradualmente, na proporção directa dos seus esforços na caminhada.
A compreensão de si própria e a realização pessoal que vai tomando cada vez mais forma, inundam-na de uma Alegria crescente, que se traduz numa vontade imensa de cantar, de glorificar a perfeição, cada vez mais próxima e sublime, apesar de sempre inatingível.
Porque o Sonho não tem fronteiras, o Amor não tem limites.
A sua Alegria esfusiante choca com a incompreensão dos outros que a rodeiam.
Não conhecem as maravilhas das vitórias conseguidas, não compreendem que o sentido da Vida não é apenas trabalhar e sofrer, mas ser Feliz.
Não sabem que a Vida ultrapassa a morte e o sofrimento, e que é urgente cantar e glorificar a Vida em todas as suas etapas.
Só o Poeta a compreende. O Poeta, que acredita na importância de ser feliz e que Viver é uma aprendizagem contínua para alcançar essa mesma Felicidade.

26 de Maio de 2018
Maria Leonor


“BICHOS” DE MIGUEL TORGA”,
«CEGARREGA

A Cegarrega ou Cigarra representa, para mim, ao mesmo tempo, o poeta e o processo da evolução e transformação do homem.

O conto sugere-nos todas as etapas que atravessamos ao longo da nossa vida: boas ou más, difíceis ou fáceis, vão-nos trasformando pouco a pouco, para no fim criarem a pessoa que somos.

Por outro lado, o canto da Cigarra pode simbolizar o Poeta… é o seu canto que permite ao cantor vencer a morte e ficar para a eternidade.
Foi o que aconteceu com Miguel Torga, que viveu durante o tempo da ditadura fascista e teve de enfrentar a falta de liberdade e a censura às suas ideias, pelo que foi ele próprio a editar a sua obra, correndo os riscos inerentes por não se submeter às regras dos Editores.

Este conto foi escrito em 1940 e não perdeu actualidade.
Ainda hoje, os seres humanos continuam a ter pela frente tempos difíceis que os fazem crescer e lhes ensinam algo de novo, participando assim na sua própria «metamorfose».

 O canto criativo, individual e amadurecido que Miguel Torga nos legou é estímulo para dar voz à nossa cegarrega interior, pois  nem só de trabalho vive o homem.

O Poeta e a Cigarra são porta-vozes da alegria e esperança, “sôpro vital” de qualquer sociedade.

[…] “cantar é acreditar na vida , e vencer a morte” (pág. 89).



Azeitão 23-05-2018

Carmo Bairrada

«Chega-lhe, cegarrega»

Só poderia ser! Um bicho do «livro dos bichos» de Miguel Torga: «cegarrega»… até cogitei que se fosse um bicho, também gostaria de ser assim. Também eu vim ao mundo de um ventre quente e aconchegado, porém fui logo gente com as suas implícitas metamorfoses. Na minha boca pequena, a fome também reclamava, às vezes não só por falta de pão… Nas minhas costas, diferentes das da cigarra, estavam ocultas as asas que retiro à mochila da vida, sempre que necessito de voar alto e corajosamente. Ninguém reconheceu o percurso da cigarra…
Pulso a pulso, emergira de um longo processo. Não era devedora de nada, no entanto doava a todos um hino inolvidável do coro universal de que era solista.
Azamboado, um camponês reclamou:
- Não se cala!...
 Ela queria lá saber! Uns preferem mourejar, outros preferem cantar, há ainda os que doseiam o tempo entre amor, alegria e labor. Na sua espreguiçadeira, completamente relaxada, cantava cantava, enquanto a invejosa formiga lhe agoirava a alegria: «Deixem lá vir o inverno» e o tempo desfolhar impaciente as páginas do calendário!... Completamente extasiado, um pássaro, um poeta, um sabedor de que cantar é levar a vida para além da morte, ignorando até o mês em que ela chega.
Juntei-me à orquestra do saltitante pardal, à voz do poeta, à de todos os poetas e todos os promovedores da alegria universal. Em uníssono, segurámos a partitura e bem afinados com a música de que somos feitos, cantámos bem alto:

- «Chega-lhe, cegarrega!...»

Adalberta Marques



Devaneios a propósito de uma Cigarra
 (conto “Cegarrega” de Miguel Torga)

A veia poética de Miguel Torga atinge quase um auge ao contar-nos a história de “Cegarrega”, fazendo-nos - felizmente – quase esquecer a versão de La Fontaine !

Descreve, com a sua habitual maestria, e em termos bastante líricos, a sua evolução desde a fase de crisálide e larva inerte, através do duro trabalho “de parto” do casulo que se rompe, até ao dar à luz de um insecto alado e, para mais, cantadeiro assim que recebe os raios calorosos do sol nos costados… Muito bem escrito como sempre, pois mais uma vez nos faz visualizar aquilo que vai contando.

E põe-nos a pensar : “Cegarrega” é uma cigarra, e a cigarra reveste vários símbolos.

O canto deste fenómeno da natureza lembra as longas tardes de verão, símbolo de Sul para as gentes que vivem no frio (lá para cima, para o norte não se ouvem cantar cigarras!), sinónimo de farniente e de lazer, de férias e de ociosidade enfim…

Mas é também o símbolo do colarinho branco, que nasceu só para gozar a vida sem precisar de trabalhar, despreocupada quanto ao próprio futuro, que não amealha nem tem arrecadações, tudo em oposição à pobre formiga, operária por antonomásia desde que nasce até morrer, e que não admira seja invejosa de tão magnífico destino !

Que importa que a cigarra morra de fome quando chegar o inverno ?

Ela cantou, mas só o poeta pode entender o que há de belo naquele som rouco “que até azamboa a gente” e que nos encanta todo o verão até ao cair das folhas… e das cigarras !

M.F. 3/3/18


“ CEGARREGA”

Quando a seara madura
Promete pão com fartura
E as uvas vinho novo,
Vem “a guitarra do povo”
Com a sua voz cristalina
E enche de música a campina.
Cegarrega, cegarrega…
E quando a cantar se pega
Não se cala todo o dia!
Junta a sua alegria
Ao cantar dos ganhões,
E as dolentes canções
Ganham nova dimensão,
Enquanto ceifam o pão!
Cegarrega, cegarrega!
É a seara que verga
Sob o peso das espigas,
É o carreiro das formigas
Que invejam esta farra
E criticam a cigarra…
É enfim a Natureza
Em toda a sua beleza,
É a orquestra invulgar
Da Sinfonia Universal.

Dormi ao som da cigarra
Quando em criança dormia,
E quando dormia, a cigarra
Era quem me adormecia!


Elita guerreiro 8/5/2018

Os Bichos de Miguel Torga – CEGARREGA
Numa primeira leitura deste conto, poder-se-á concluir tratar-se de uma história banal da cigarra e da formiga, escrita de forma superior, onde o autor dá grande enfase à atividade da cigarra e ao seu canto. Miguel Torga começa por descrever as transformações e o sofrimento que conduzem à vida adulta da cigarra. Depois, o conto fala-nos da alegria da cigarra adulta que, durante o dia, encanta uns e incomoda outros com a sua cantoria monótona. “O senhor camponês”, com uma atividade mais próxima da formiga, não se conforma com o canto da cigarra, acusando-a de barulhenta e inimiga de quem trabalha.
Por seu turno, o autor louva a ação da cigarra que, adivinhando o seu fim próximo, não perde pitada de tempo na mensagem que o seu canto transmite, ou seja: uma mensagem à vida sabendo que a morte virá com o Outono.
Porém, Miguel Torga viveu, grande parte da sua vida, durante a ditadura do Estado Novo e portanto teve de lidar com as dificuldades impostas pela censura aos escritos e escritores. Por isso, uma outra leitura passa por interpretar este conto como uma forma do autor passar algumas mensagens, iludindo o crivo da censura. A cigarra, com o seu canto tradicional, pode representar o poeta e a sua mensagem. Já o camponês pode representar aqueles que pretendem calar o poeta e a sua obra.

Fernando Amaral

Maio de 2018
Cega-Rega
  
Um conto. Numa alusão aos ciclos de vida. Um cântico de glória ao triunfo da concepção do ser, que através das metamorfoses vai evoluindo no tempo, seguindo a sua génese e o destino traçado no cosmos.
Cega-Rega. É por si só um símbolo de vitória da vida, que em gritos de liberdade vai anunciando a sua ascensão, traduzida num milagre da natureza, que acompanha os tempos, de estações em estações.
É também um símbolo de persistência e resistência às adversidades que a própria natureza impõe, expressas na vida e na morte.
Nunca desiste, até subir ao ramo mais alto como o topo do seu mundo, para nele deixar em gritos de louvor a consciência do ser, numa voz de coragem que sempre a acompanhou, mas que só agora chegara o tempo de soltar ao vento. Tal como a sua génese já liberta num montouro qualquer, esperava nova primavera, para nova ascensão na voz estridente de nova cigarra, que acabara de vencer a vida…


Fernando Sousa


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