sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Em tempo de pandemia, por Mercedes Ferrari

 Misérias de Paris

 Cada vez que atravesso a rua naquela esquina, vejo-os.

 Enrolados em mantas ou edredons, no inverno, à beira da “boca” de saída de ar de onde se exala algum calor que vem das profundezas infernais, só protegidos por um “telhado” proporcionado pelo metro aéreo, ficam ali, sentados em cima de caixas de cartão que abrem para fazer tapetes, ou no verão, na mesma posição … só um pouco mais despidos.

Um pouco desgrenhados, um pouco sujos ma non troppo, rodeados de sacos de plástico onde provavelmente guardam igualmente bens pessoais e comida, e aquele ar desprendido, ausente, os olhos cravados num horizonte que só eles conhecem, como se não estivessem ali nem vissem as pessoas que passam obrigatoriamente para o trabalho ou para as compras – e que também evitam cuidadosamente olhar para eles...

No inverno, à noite, abrem umas tendas de campismo e enfiam-se lá dentro, não sem terem bebido uns copos o que muitas vezes degenera em zaragatas e palavrões …

Há ali mulheres e homens. Também uma ou duas crianças.

Durante o dia, uma vez as tendas dobradas, há duas situações:

- ou desaparecem deixando apenas um embrulho ou outro no seu local de eleição ou mesmo nada, e nesses casos eu, perplexa, pergunto-me “onde terão ido ? Será que têm um trabalho e carecem apenas de morada ? Ou vão simplesmente deambular pela cidade a pedir esmola ? Ou irão para centros de dia onde lhes fornecem comida e - talvez - casa de banho para as abluções ?”

-  ou, às vezes, algumas mulheres permanecem sentadas nos seus tapetes de papelão, muito quietas, aparentemente não fazendo nada ou remexendo nos seus sacos de plástico, e falando baixinho entre elas… nunca estão sozinhas.

 Sim, é só à noite que o tom sobe! Por vezes muito alto…

Eu oiço-os, moro mesmo ali por cima da esquina e, mesmo quando não é uma verdadeira zaragata falam, riem, bulham muito alto e pela madrugada adentro, sem se preocuparem muito - ou nada - com os cidadãos comuns que terão que se levantar cedo para trabalhar.

E passam os anos.

E continuam lá !

Mercedes Ferrari, outubro/20 

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