Para uma análise do
conto “O Homem” de
Sophia de Mello
Breyner, comparado com “O Operário em Construção” de Vinicius de Moraes
Novembro
estava no fim, e naquela tarde com o céu cinzento carregado de nuvens, a cidade
fervilhava de gente: andavam tão depressa, que não falavam, não se conheciam e
continuavam sempre em frente, naquele ritmo, que nem davam conta do que se
passava à sua volta…
Seguiam
sempre em frente. Pareciam uns verdadeiros robots comandados à distância pelos
seus donos, cujo bem-estar e riqueza eram adquiridos à conta do potencial dos
braços de todos aqueles, que ainda não tinham consciência do seu verdadeiro
valor .
Alguns,
ou seria a maioria, demonstravam nos seus rostos o cansaço, o desânimo, e até
um certo sofrimento. Todos sem excepção carregavam os seus próprios problemas.
Talvez por desconhecerem que o seu trabalho deveria ser considerado um bem
comum e não de uma minoria. Eram, realmente, o espelho daquele que é o
“Operário em Construção”.
No
meio dessa multidão, alienada, entre cabeças e ombros, destacava-se um homem
com uma criança nos braços. Caminhava
devagar junto ao frio muro, e ninguém dava conta dele, era como se não
existisse.
Mas,
por entre a confusão de cabeças e ombros, a narradora com muita dificuldade
conseguiu ultrapassá-lo de raspão, levada por aquela vertigem de gente e só teve tempo de reparar nos lindos olhos
azuis da criança, como se eles fossem uma madrugada de verão, ou uma rosa, ou o
orvalho, ou uma belíssima imagem de inocência humana.
A
narradora continuava a ser levada pela multidão. De repente, pensou ir em
sentido oposto e tentar chegar àquela figura. Quando parou a uma certa
distância, aguentando todos os embates daquela gente em movimento, conseguiu
ver o homem extraordinariamente belo:
Teria 30 anos.
Rosto bem esculpido com
sulcos profundos provocados pela miséria, abandono e, solidão.
O seu fato, que tendo
perdido a cor tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela
fome.
Era o retrato fiel da
pobreza, e de um enorme sofrimento.
O
homem, entretanto, voltou a erguer os
olhos ao céu, com um jeito de quem já tinha chegado ao fim das suas forças e ao
fim dos seus limites.
Todo ele transpirava
sofrimento, resignação e espanto, dando a entender que queria fazer uma pergunta e obter uma
resposta. Mas
o céu era um imenso deserto de nuvens pesadas…
Naquele
instante, a narradora, como se tivesse tido um “revelação”, pensou: Eu conheço este homem, mas de onde?
Chamou a si todas as
forças, e como se de um filme se tratasse, em segundos, passaram pela sua mente
muitas imagens. Uma a uma, devagar, e inconfundíveis, apareceram então as
palavras:
“Pai, Pai porque me abandonaste?”
Por
último, a narradora compreendia agora, que para além de todas as durezas e
traições dos homens deste mundo desumanizado, começava par aquele homem a sua
última prova, “o suplício”: O
Silêncio de Deus.
Já
faltava pouco para a narradora alcançar o homem, quando o viu cair juntamente
com a criança, Então, mesmo distante, reparou que da sua boca corria
um rio de sangue, e o seu olhar
continuava a ser de “infinita paciência.
A criança estava no
meio do passeio com o seu vestido sujo de sangue, e com ele tapava a cara e chorava.
A
narradora tentava chegar junto deles, mas já se tinha formado um grande e denso
círculo de pessoas, que era impossível de romper. Queriam todos parar, ver o
que tinha acontecido, ajudar…
Foi
nesse preciso momento, que em cada uma daquelas pessoas tinha entrado “a tomada de consciência de
valores,” que até aí lhes era desconhecida. Assim, começou a revolução no
interior de cada uma delas, como se fosse o despertar de todos os sentidos, que
lhes tinham sido negados ao longo de anos.
Começaram
a aprender a dizer “não” a tudo o
que não fosse justo e transparente.
Agora
sim, exigiam ser tratados como seres humanos e não como máquinas, queriam construir uma
sociedade mais justa e humanizada para todos.
A
narradora como não conseguia chegar à frente, só ouviu as lamentações, os apitos da polícia e o barulho da sirena da
ambulância chegando. Depois quando o
círculo se abriu, o homem e a criança tinham desaparecido.
Entretanto,
a multidão começou a dispersar e a
narradora ficou só no meio do passeio, caminhando
para a frente, levada pelo movimento da cidade.
Passaram muitos anos.
O homem deve ter morrido.
Mas continua até aos
nossos dias, a acompanhar-nos pelas ruas.
Que
um dia foram de um qualquer “Operário em Construção”.
Azeitão,
08-05-2017
A TENTAÇÃO
Análise / comparação de textos
A
vida de Jesus, como sabemos, tem inspirado gerações e gerações de artistas de
todas as «disciplinas» da arte: da escultura à música, da pintura à poesia e à
literatura …
Nesta
última, são tantas as obras que se baseiam na história/lenda da vinda do
Messias à terra, que é impossível lembrá-las todas.
Às
vezes, a partir de uma parábola, outras de uma simples frase da Bíblia, ou
ainda de alguma citação dos Evangelhos, são compostos versos,
criados contos, tecidos romances...
Por exemplo,
A
frase «Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares» deu azo a dezenas de contos, romances e ficções, frase-chave
em duas das histórias que aqui tentamos
analisar :
- a poesia O Operário em Construção, de Vinicius de
Morais
-
o poema A Nau Catrineta de Almeida
Garrett
-
e o conto O Homem, de Sophia de Melo
Breyner.
É
óbvio que nas duas primeiras obras, o tema é a
“tentação” e a resistência à mesma. No conto de Sophia de Melo Breyner, o elo é
menos evidente, mas algo sugere que existe um elo!
No
Operário em Construção, Vinicius narra-nos como é que, a pouco e pouco, um
simples operário – que claramente representa aqui toda a classe operária - adquire
a consciência (com que certamente não nasceu!) da sua condição de homem
subjugado, abusado, e aproveitado por pouco preço.
Quando
os potentes – aqui representados pelo “patrão” - se dão conta do despertar
dessa consciência, vão, de um certo modo, desempenhar o mesmo papel que o diabo
no deserto: tentar demovê-lo da sua liberdade individual em prol de uma
obediência cega ao “poder” – ao patronato.
Na
Nau Catrineta, o diabo, ao fim de um diálogo com o capitão, é muito explícito,
mostrando o seu jogo: só vem pelas almas, não quer mais nada !
Ambas
as histórias terminam com a vitória do “bem sobre o mal” (outra coisa não era
de esperar!) : no caso do operário, que recusa a oferta com um peremptório não,
preferindo o seu livre arbítrio ao fraco poder que lhe é proposto, e no caso do
Capitão que recusa vender a sua alma para salvar a vida e prefere afundar-se
com a sua nau.
Nem
mesmo a criança que leva ao colo como se esta lhe fosse desconhecida; o que nos
leva a pensar que esta menina poderia aqui figurar a tentação : “levas-me onde
eu quero e eu salvo-te a vida” …
A
descrição deste homem que nos faz a autora, lembra-nos, quase antes que ela
no-lo diga, a figura de Jesus Cristo, no seu desapego das coisas terrenas e
levantando os olhos ao céu como que chamando pelo Pai.
Quando
ele cai, poderia ser para se livrar do fardo que levava ao colo, o fardo da
tentação…
E
lembra-nos a imagem sofrida e sangrenta do “Ecce Homo” de Pôncio Pilatos… E
esse poderia ser o elo!
Mercedes Ferrari
A Intemporalidade no Conto “O Homem” de
Sophia de Mello Breyner
A
acção deste conto passa-se no movimentado centro da cidade, com os seus altos
muros e negros. A multidão, ao fim de mais um dia de trabalho, torna-se
frenética e alucinada: todos querem chegar depressa a qualquer lado.
A
narradora está no meio desta barafunda de ombros e cabeças, que se deslocam
vertiginosamente. Mas ela fala de um homem anónimo, solitário no meio de tal
multidão, que leva nos braços uma criança tão bela quanto o próprio homem, cuja
presença não é notada.
Acaba
por ser ela a fixar-se no olhar do protagonista, apesar dos lindos olhos azuis
da criança terem sido a primeira coisa, que a deslumbrou.
Mas,
aquele homem, ela conhece-o, ou melhor reconhece-o (aquela posição da cabeça, o
olhar, o ar de sofrimento).
Começaram
então, nos recônditos da sua memória, a passar mil imagens até que, finalmente,
o encontra associado às palavras de Cristo, na cruz:
“Pai, Pai porque me abandonaste?”
(Bíblia,
Salmo 22, “Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?”)
São
as palavras de alguém, que já está nos limites das suas forças, que já não
espera qualquer auxílio humano e se sente abandonado pelo próprio Deus.
A
narradora, quando faz esta ligação, volta para trás à procura do homem Cristo,
opondo-se a toda aquela multidão, que circulava na cidade e lhe dificultava o
caminhar.
Quando
já está perto dele, o homem cai no chão juntamente com a criança, que levava
nos braços e que ficou no passeio a chorar, ao mesmo tempo que tapava a cara
com o seu vestido sujo de sangue, que saíra da boca do homem.
A
narradora apressa-se, mas agora todas as pessoas que não tinham reparado nele,
aglomeraram-se à sua volta num círculo tão fechado e intransponível, que ela,
angustiada por não poder chegar perto para prestar auxílio, não consegue
ultrapassar.
Ambos
(a narradora e o homem) estavam completamente sós, incapazes de comunicar.
Qualquer um deles estava em sofrimento: ela, por se sentir inútil e el,e por se
sentir abandonado por todos.
Tanto
o homem como a mulher (somos todos nós) que atingem os limites da natureza
humana, continuam a estar sempre connosco… por isso, cabe-nos a nós descobri-los e
auxiliá-los.
Não
existe melhor maneira de dar conta desta
Intemporalidade que com a própria frase do final do
texto:
“Muitos
anos passaram. O homem certamente morreu. Mas, continua ao nosso lado, Pelas
ruas.
Carmo Bairrada
Maio 2017
“ A CADA UM A SUA CRUZ”
A beleza inocente daquela criança, impressionou a narradora! Poderia ter
acontecido
numa qualquer rua de Lisboa, no tempo em que a cidade fervilhava de gente
apressada, que se acotovelava nos passeios. Empurrada pela multidão,
a narradora
passou por aquele homem que levava ao colo uma criança
que ela comparou” à beleza
duma madrugada de Verão ou a uma rosa orvalhada. ”Ao olhar para trás,
mais uma vez
para contemplar a criança, reparou, surpreendida, no rosto do homem que a
transportava: era jovem, “devia ter uns trinta anos.” Pobremente vestido, no
rosto com
barba de vários dias notavam-se marcas de sofrimento, abandono e
solidão. “No
entanto, possuía uns belíssimos olhos claros, de luminosa doçura!
Como quem pede
uma resposta para os seus sofrimentos, o homem levantou a cabeça
para o céu. “Um
céu alto sem resposta cor de frio.”
Como Jesus, que consciente da sua agonia, pediu
ajuda ao Pai: ” Pai afasta de mim este cálice, Marcos 14-34-36”.
Para o homem em
sofrimento não havia respostas. “O céu eram planícies e planícies de silêncio. ” No
meio de tanta gente que por ele passava, o homem estava só,
com a criança que
aconchegava nos braços.” Só eu tinha parado, surpreendida por aquela mistura de
miséria, sofrimento e beleza! “ Inutilmente. O homem
nem dava pela minha presença!”
À semelhança
dos discípulos, avisados por Jesus do seu próximo
martírio, que não puderam evitar que o seu destino se
cumprisse, também a narradora se sentiu impotente para auxiliar ou evitar
o sofrimento daquele homem, que sendo um desconhecido, lhe
parecia ao mesmo tempo familiar. “Quis fazer alguma coisa mas não
sabia o quê. “Irremediavelmente o homem e a criança,
seguiam rumo ao seu inevitável destino! Tal
como Jesus caminhou para o calvário resignado à vontade e ao silêncio
de Deus! Era
esse o aspecto do homem, que a narradora descreve.”
Pai nas tuas mãos entrego o
meu destino, Lucas 23-24-46”Agora eu penso no que poderia ter feito. “Tal
como
Maria, Mãe de Jesus, a narradora nada pode fazer, para evitar a
queda daquele corpo,
que a multidão em círculo rodeava sem lhe permitir aproximar-se. Já
a narradora tinha
tomado a consciência de que estava há muito gravada no “fundo
da sua memória: “O
homem não era um estranho! “Era aquela a posição
da cabeça, era aquele olhar, era
aquele sofrimento, era aquele abandono, aquela solidão”,
que trouxe àquele
momento a comparação, com o sofrimento de Cristo, nos últimos
momentos da sua
crucificação. ---“ Pai, Pai, porque me abandonaste?”
Marcos, 15-16-21-34 e Mateus 27-
32-46.” Quem ergueu do chão aquele corpo ensanguentado? Quem tomou conta
da
pequena “rosa orvalhada”? Apenas a chegada e a partida duma ambulância!
“ E
rapidamente o círculo se desfez seguindo cada um o seu caminho.”
O homem e a
criança tinham desaparecido! “ Este encontro da narradora
com o homem que, sendo
um desconhecido, lhe trouxe à memória pela postura resignada, um outro Homem que
perante o sacrifício da sua própria vida, teve a bondosa coragem de pedir ao
Pai
perdão para os seus algozes(” Perdoa-lhe Pai pois não
sabem o que fazem.” Lucas-23-
33-34”) fê-la compreender e avisar-nos que O Homem continua por aí,
pelas ruas da memória dos povos. “Continua ao nosso lado”!...
Elita
Guerreiro 17 /5 / 2017
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