quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Partindo de poemas de Jorge de Sena

Partindo do poema Desencontro de J. de Sena:

[Desencontro
Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.
Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum']

Perturbação

Querer encontrar a paz é uma aposta
Onde procurar é letra morta
E ela não está nunca onde se está

Será então em vão que se procura ?
E se se encontra, ela nunca dura
Há sempre uma luz fria que nos cega
Um ruido fatalmente nos desperta
É um desencontro sem encontro certo
O simplesmente estar já a perturba
E a paz foge para bem longe

Para lá do onde não se está

M.F. 2.11.19



A propósito do poema escolhido: "Génesis" de J. de Sena
CALAR

Calar é de rigor, falar nem vale a pena:
a fala é só ruído e ninguém ouve
por mais que se grite são só sons
no meio de outros sons atirados à arena

Não fales companheiro, não digas o que sentes;
Não queiras deixar ver o que levas contigo
nem digas o que é justo pois justiça não há:
vão olhar de soslaio, vão dizer-te que mentes
mas não esqueças : ao calar, vão pensar que consentes…

M.F. 
24.11.19

À CONVERSA COM JORGE DE SENA
(partindo  do poema "Cantiga de Abril" http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=tl2)

E chegaste a saber, poeta,
Que cor tem a liberdade
Que há muito não existia?..

Teve por um tempo a cor das fardas
A cor dum cravo alegre nas espingardas
Das armas que brilharam reluzentes
Do riso do abraço das gentes
Da réstia de sol por entre a chuva!
Até aí, espreitava a liberdade numa curva
Tão gritantemente pronunciada,
Era apenas e só sonhada!
Mas tu, Poeta, já a pressentias
Sentias o seu cheiro, a cor, as alegrias,
O anúncio de um mundo novo
Do quebrar das algemas deste Povo!

Permite-me uma pergunta serena,
Que cor tem a liberdade, Jorge de Sena?

Elita Guerreiro
Março 2020

sobre 
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS  FUZILAMENTOS DE GOYA, JORGE DE SENA

Escolhi este poema, porque me impressionou.

Este texto profundo e difícil de Jorge de Sena dá ao leitor a possibilidade, de linha a linha, observar a dura maneira de escrever e ao mesmo tempo compreender a carta escrita a seus filhos com os ensinamentos maravilhosos e a parte mais obscura e de horror do Mundo.

O autor, como pai, não sabendo ainda em que mundo os filhos irão viver, deseja que ele seja um espaço onde possam habitar com Liberdade e Justiça, desde que estas duas condições sejam “uma fiel dedicação á honra de estar vivo”.

Pede também que amem o seu Mundo e que vejam a vida como uma dádiva, e que ela seja vivida da melhor maneira: em Liberdade!

A Humanidade é em si própria uma imensidão sem conta no Universo, que é o espaço onde habitamos. Existem pessoas que amaram o seu semelhante no que tinha de “único, de insólito, de livre, de diferente”. mas aqueles a quem o Autor se refere foram maltratados de uma forma tão cruel, que aquelas crianças ainda não poderiam compreender, mas ainda assim fez questão que o escutassem, sabendo que lhes iria ser custoso de ouvir: “digo-vos que essa gente boa foi Sacrificada, Torturada, Espancada e entregue hipocritamente à secular Justiça”.

Alguns deles acreditavam em Deus, eram fiéis ao seu Pensamento e á Pátria, outros acreditavam na Esperança e outros tinham fome, que lhes comia as entranhas.

Os castigos que sofreram foram terríveis, os seus corpos anonimamente empilhados, desaparecendo tão rápido quanto as suas cinzas.

Todos os que sofreram aqueles castigos foram acusados de crimes que não tinham cometido. Infelizmente tudo o que se viveu e os horrores cometidos são bocados de uma história sem fim:  “mas isto não é nada meus filhos, no mundo todos somos um elo de uma corrente de suor e sangue”...

Dá que pensar, que nada nem ninguém em qualquer parte “vale mais que uma vida, ou a alegria de tê-la. É isto que mais importa – essa alegria”...

Não será por acaso, quando se houve falar de Dignidade, que seja um sinal de que estamos vivos e essa alegria chega até nós para não sabermos que existe alguém que naquele espaço de tempo esteja “ menos vivo, ou morre, para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos nós”.

“mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga, tudo faz parte da vida e temos o dever de saber com serenidade, sem culpar ninguém, sem qualquer espécie de terror, sem ter ambição, sem indiferença, esperar que se possa conseguir ultrapassar tudo aquilo que nos possam mostrar


NOTA: O mundo que pode ser criado, cumpre a cada um de nós cuidar dele, como sendo uma coisa comum a todos, que nos foi cedida para ser salvaguardada com muito cuidado e respeito, em memória “do sangue que nos corre nas veias  e por todo aquele que inocentemente foi derramado ao longo da História da Humanidade.

Penso que é uma boa reflexão sobre o Sacrifício Humano e uma grande aprendizagem do Valor da Vida, que Jorge de Sena ensinou a seus filhos e a todos nós.

(Jorge de Sena, nesta carta a seus filhos, fala da Invasão de Espanha por Napoleão)

Azeitão, 07-10-2019
Carmo Bairrada

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