Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.
Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum']
Perturbação
Querer encontrar a paz é uma aposta
Onde procurar é letra morta
E ela não está nunca onde se está
Será então em vão que se procura ?
E se se encontra, ela nunca dura
Há sempre uma luz fria que nos cega
Um ruido fatalmente nos desperta
É um desencontro sem encontro certo
O simplesmente estar já a perturba
E a paz foge para bem longe
Para lá do onde não se está
M.F. 2.11.19
A propósito do poema escolhido: "Génesis" de J. de Sena
CALAR
Calar é de rigor, falar nem vale a pena:
a fala é só ruído e ninguém ouve
por mais que se grite são só sons
no meio de outros sons atirados à arena
Não fales companheiro, não digas o que sentes;
Não queiras deixar ver o que levas contigo
nem digas o que é justo pois justiça não há:
vão olhar de soslaio, vão dizer-te que mentes
…
mas não esqueças : ao calar, vão pensar que consentes…
M.F.
24.11.19
(partindo do poema "Cantiga de Abril" http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=tl2)
E
chegaste a saber, poeta,
Que
cor tem a liberdade
Que
há muito não existia?..
Teve
por um tempo a cor das fardas
A
cor dum cravo alegre nas espingardas
Das
armas que brilharam reluzentes
Do
riso do abraço das gentes
Da
réstia de sol por entre a chuva!
Até
aí, espreitava a liberdade numa curva
Tão
gritantemente pronunciada,
Era
apenas e só sonhada!
Mas
tu, Poeta, já a pressentias
Sentias
o seu cheiro, a cor, as alegrias,
O
anúncio de um mundo novo
Do
quebrar das algemas deste Povo!
Permite-me
uma pergunta serena,
Que
cor tem a liberdade, Jorge de Sena?
Elita
Guerreiro
Março
2020
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA, JORGE DE SENA
Escolhi este poema, porque me
impressionou.
Este texto profundo e difícil de Jorge
de Sena dá ao leitor a possibilidade, de linha a linha, observar a dura maneira
de escrever e ao mesmo tempo compreender a carta escrita a seus filhos com os
ensinamentos maravilhosos e a parte mais obscura e de horror do Mundo.
O autor, como pai, não sabendo ainda em
que mundo os filhos irão viver, deseja que ele seja um espaço onde possam
habitar com Liberdade e Justiça, desde que estas duas condições sejam “uma fiel
dedicação á honra de estar vivo”.
Pede também que amem o seu Mundo e que
vejam a vida como uma dádiva, e que ela seja vivida da melhor maneira: em
Liberdade!
A
Humanidade é em si própria uma imensidão sem conta no Universo, que é o espaço onde
habitamos. Existem pessoas que “amaram
o seu semelhante no que tinha de “único, de insólito, de livre, de diferente”. mas aqueles a quem o Autor se refere foram maltratados de uma forma tão
cruel, que aquelas crianças ainda não poderiam compreender, mas ainda assim fez
questão que o escutassem, sabendo que lhes iria ser custoso de ouvir: “digo-vos que
essa gente boa foi Sacrificada, Torturada, Espancada e entregue hipocritamente à secular
Justiça”.
Alguns
deles acreditavam em Deus, eram fiéis ao seu Pensamento e á Pátria, outros
acreditavam na Esperança e outros tinham fome, que lhes comia as entranhas.
Os
castigos que sofreram foram terríveis, os seus corpos anonimamente empilhados,
desaparecendo tão rápido quanto as suas cinzas.
Todos
os que sofreram aqueles castigos foram acusados de crimes que não tinham cometido.
Infelizmente tudo o que se viveu e os horrores cometidos são bocados de uma
história sem fim: “mas
isto não é nada meus filhos, no mundo todos somos um elo de uma corrente de
suor e sangue”...
Dá que
pensar, que nada nem ninguém em qualquer parte “vale mais que uma vida, ou a alegria de tê-la. É isto que mais
importa – essa alegria”...
Não será por acaso, quando se houve
falar de Dignidade, que seja um sinal de que estamos vivos e essa alegria chega
até nós para não sabermos que existe alguém que naquele espaço de tempo esteja “ menos vivo, ou
morre, para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos nós”.
“mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga”, tudo faz parte da vida e temos o dever de saber com
serenidade, sem culpar ninguém, sem qualquer espécie de terror, sem ter
ambição, sem indiferença, esperar que se possa conseguir ultrapassar tudo
aquilo que nos possam mostrar
NOTA: O
mundo que pode ser criado, cumpre a cada um de nós cuidar dele, como sendo uma
coisa comum a todos, que nos foi cedida para ser salvaguardada com muito
cuidado e respeito, em memória “do
sangue que nos corre nas veias” e por todo aquele
que inocentemente foi derramado ao longo da História da Humanidade.
Penso
que é uma boa reflexão sobre o Sacrifício Humano e uma grande aprendizagem do
Valor da Vida, que Jorge de Sena ensinou a seus filhos e a todos nós.
(Jorge
de Sena, nesta carta a seus filhos, fala da Invasão de Espanha por Napoleão)
Carmo
Bairrada
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