quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Textos sobre Sophia de Mello Breyner

PARA SOPHIA M. B. ANDRESEN
Nasceu há 100 Anos (06-11-1919

Já não está entre nós fisicamente, mas a sua obra permanecerá para sempre na nossa memória.

Era um ser humano íntegro e belo. Os valores pelos quais lutou  respiravam por todos os poros do seu corpo: Liberdade, Justiça e Verdade. Foram estes os conceitos  que lhe pautaram a vida e, por reflexo, a obra.

Nunca se sentia satisfeita, queria ir sempre mais além para atingir o cobiçado Graal da Perfeição e Pureza.

Sophia amava a vida à sua maneira. Na sua caminhada pela escrita, recorria por vezes às suas origens e ao valor do simbolismo, que tinha para ela a Luz e a Cor das coisas que a rodeavam.

Talvez por isso ela tenha tido um amor imenso pelo Mar: lavava-lhe a alma como se fosse um baptismo, despertando nela os sentidos para escrever sobre esse amigo infinito que, tão depressa, estava calmo como, de repente, se tornava aterrador. Como naquele dia carregado de nuvens negras… Lá ao longe, num farol abandonado à fúria das grandes vagas do mar de que tanto gostava, Sophia conseguiu ver uma pequena luz que brilhava: seria o sinal da LIBERDADE tão esperada?
Se assim fosse, era capaz de subir a todas as arribas e nadar em qualquer Oceano, para a conseguir resgatar.

Finalmente, essa hora chegou na longa madrugada do dia 25 de Abril de 1974.
Foi o tempo esperado ao longo de uma vida inteira, que estava agora ao seu alcance, sem mordaças e sem amarras.

A Fénix tinha renascido naquela praia sem impureza e num espaço puro em que o Tempo e Sophia, apaixonadamente, acabavam de encontrar a tão sonhada e desejada “LIBERDADE”.

Azeitão, 16-10-2019

Carmo Bairrada



A CADA UM A SUA CRUZ

A beleza inocente daquela criança impressionou a narradora! Poderia ter acontecido
numa qualquer rua de Lisboa, no tempo em que a cidade fervilhava de gente
apressada, que se acotovelava nos passeios. Empurrada pela multidão, a narradora
passou por aquele homem que levava ao colo uma criança, que ela comparou “à beleza
duma madrugada de Verão ou a uma rosa orvalhada. Ao olhar para trás, mais uma vez
para contemplar a criança, reparou, surpreendida, no rosto do homem que a
transportava: era jovem, devia ter uns trinta anos. Pobremente vestido, no rosto com
barba de vários dias notavam-se marcas de sofrimento, abandono e solidão. No
entanto, possuía uns belíssimos olhos claros, de luminosa doçura! Como quem pede
uma resposta para os seus sofrimentos, o homem levantou a cabeça para o céu. Um
céu alto sem resposta cor de frio. Como Jesus, que consciente da sua agonia, pediu
ajuda ao Pai: Pai afasta de mim este cálice, Marcos 14-34-36. Para o homem em
sofrimento não havia respostas. O céu eram planícies e planícies de silêncio. No
meio de tanta gente que por ele passava, o homem estava só, com a criança que
aconchegava nos braços. Só eu tinha parado, surpreendida por aquela mistura de
miséria, sofrimento e beleza!  Inutilmente. O homem nem dava pela minha presença!
À semelhança dos discípulos, avisados por Jesus do seu próximo martírio, que não puderam evitar que o seu destino se cumprisse, também a narradora se sentiu impotente para auxiliar ou evitar o sofrimento daquele homem, que sendo um desconhecido, lhe
parecia ao mesmo tempo familiar. Quis fazer alguma coisa mas não sabia o quê. Irremediavelmente, o homem e a criança seguiam rumo ao seu inevitável destino! Tal
como Jesus caminhou para o calvário resignado à vontade e ao silêncio de Deus! Era
esse o aspecto do homem, que a narradora descreve. Pai nas tuas mãos entrego o
meu destino, Lucas 23-24-46Agora eu penso no que poderia ter feito. Tal como
Maria, Mãe de Jesus, a narradora nada pode fazer, para evitar a queda daquele corpo,
que a multidão em círculo rodeava sem lhe permitir aproximar-se. Já a narradora tinha
tomado a consciência de que estava há muito gravada no fundo da sua memória: o homem não era um estranho! Era aquela a posição da cabeça, era aquele olhar, era
aquele sofrimento, era aquele abandono, aquela solidão, que trouxe àquele
momento a comparação, com o sofrimento de Cristo, nos últimos momentos da sua
crucificação. Pai, Pai, porque me abandonaste? Marcos, 15-16-21-34 e Mateus 27-
32-46. Quem ergueu do chão aquele corpo ensanguentado? Quem tomou conta da
pequena rosa orvalhada? Apenas a chegada e a partida duma ambulância! E
rapidamente o círculo se desfez seguindo cada um o seu caminho. O homem e a
criança tinham desaparecido! Este encontro da narradora com o homem que, sendo
um desconhecido, lhe trouxe à memória pela postura resignada, um outro Homem que
perante o sacrifício da sua própria vida, teve a bondosa coragem de pedir ao Pai
perdão para os seus algozes (Perdoa-lhe Pai pois não sabem o que fazem. Lucas-23-
33-34) fê-la compreender e avisar-nos de que O Homem continua por aí, pelas ruas da memória dos povos. Continua ao nosso lado!...

Elita Guerreiro 17 /5 / 2017

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