Sobre contos como O Silêncio, Fada Oriana...
Comentário de Anahí Cano Lawrynowicz sobre A FADA ORIANA, de Sophia de Mello Breyner Andresen
Era uma vez uma praia atlântica,
O Silêncio, in Histórias da Terra e do Mar
A Fada Oriana
Sophia na primeira pessoa
Sophia de Mello Breyner no seu tempo (arquivo Biblioteca Nacional)
O Nome das Coisas
A Casa da Travessa das Mónicas (in conto "O silêncio", Histórias da Terra e do Mar)
TEXTOS
As rosas
Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.
in Dia do Mar, 1947
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Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.
Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.
E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.
in Poesia, 1944
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Inventei a dança para me
disfarçar.
Ébria de solidão eu quis
viver.
E cobri de gestos a nudez da
minha alma
Porque eu era semelhante às
paisagens esperando
E ninguém me podia entender.
in Coral, 1950
Iremos juntos sozinhos pela
areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os
corais
Que na praia deixou a maré
cheia.
As palavras que disseres e
que eu disser
Serão somente as palavras que
há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o
vento.
O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um
defeito
Cheio de imagens e
conhecimento.
in No Tempo Dividido, 1954
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Soneto à maneira de Camões
Esperança e desespero de
alimento
Me servem neste dia em que te
espero
E já não sei se quero ou se não
quero
Tão longe de razões é meu
tormento.
Mas como usar amor de
entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu
quero
Ninguém o dá senão por um
momento.
Mas como és belo, amor, de não
durares,
De ser tão breve e fundo o teu
engano,
E de eu te possuir sem tu te
dares.
Amor perfeito dado a um ser
humano:
Também morre o florir de mil
pomares
E se quebram as ondas no oceano.
in Coral, 1950
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Para atravessar contigo o
deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o
terror da morte
Para ver a verdade para perder
o medo
Ao lado dos teus passos
caminhei
Por ti deixei meu reino meu
segredo
Minha rápida noite meu
silêncio
Minha pérola redonda e seu
oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do
paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia
duro
Sem os espelhos vi que estava
nua
E ao descampado se chamava
tempo
Por isso com teus gestos me
vestiste
E aprendi a viver em pleno
vento
in Livro Sexto, 1962
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As Pessoas
Sensíveis
As pessoas
sensíveis não são capazes
De matar galinhas Porém são capazes De comer galinhas
O dinheiro cheira
a pobre e cheira
À roupa do seu corpo Aquela roupa Que depois da chuva secou sobre o corpo Porque não tinham outra O dinheiro cheira a pobre e cheira A roupa Que depois do suor não foi lavada Porque não tinham outra
«Ganharás o pão
com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto E não: «Com o suor dos outros ganharás o pão»
Ó vendilhões do
templo
Ó construtores Das grandes estátuas balofas e pesadas Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes
Senhor
Porque eles sabem o que fazem
in Livro
Sexto, 1962
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25 de Abril
Esta é a madrugada que eu
esperava
o dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do
silêncio
E livres habitamos a
substância do tempo
in O Nome das Coisas, 1977
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O Velho Abutre
O velho abutre é sábio e alisa
as suas penas
A podridão lhe agrada e seus
discursos
Têm o dom de tornar as almas
mais pequenas
In Livro Sexto, 1962
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Arte
Poética III
A
coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do
qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho
do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e
inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a
própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros
artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero
reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das
coisas. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de
Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um
pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino,
realização, salvação e vida.
Sempre
a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo
traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se
a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre
dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a
árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o
anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso
esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do
mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma
questão de atenção, de sequência e de rigor.
E
é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a
buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é
desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no
teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o
coro de Ésquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua
riqueza, derruba o altar sagrado da justiça.» Pois a justiça se confunde com
aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer
integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o
Sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do
homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do
mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos
revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo
própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e
protesto testemunha a unidade da nossa consciência.
A
moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum
programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida,
integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda
tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa
época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do
mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não
aprendeu a ceder aos desastres.» Há um desejo de rigor e de verdade que é
intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem
falsa.
O
artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de
marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência,
influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos
outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de
trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade
e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência comum.
Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre
dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela
sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da
dignidade do ser.
Eis-nos
aqui reunidos, nós escritores portugueses, reunidos por uma língua comum. Mas
acima de tudo estamos reunidos por aquilo a que o padre Teilhard de Chardin
chamou a nossa confiança no progresso das coisas.
E
tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar, saudar os
meus amigos ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles que estão
unidos por uma fé e por uma esperança.
(Palavras
ditas em 11 de Julho de 1964 no almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de
Escritores por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuido a
Livro Sexto.)
Arte
Poética V
Na minha infância, antes de
saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional
português, chamado Nau
Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a
sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que
nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram
consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste
mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se
conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do
jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em
si.
No fundo, toda a minha vida
tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo
do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem
silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro —
aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas —
coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema.
E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre,
desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes
três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal Que reconheço por não ser já minha.
(Lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988,
por ocasião do encontro intitulado Les Belles Étrangères. |
Arte Poética IV
Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A
minha maneira de escrever fundamental é muito próxima deste «acontecer». O
poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que
escuto e noto.
É possível que esta maneira esteja em parte
ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem
ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia
literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam
em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que
estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e
atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de
que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador. É difícil
descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parte que não consigo
distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não vejo.
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num
equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da concentração. O meu
esforço é para conseguir ouvir o «poema todo» e não apenas um fragmento. Para
ouvir o «poema todo» é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que
eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que
quando o poema se quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minha
aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que
acontece, que aparece como já feito? A esse «como, onde e quem» os antigos
chamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o
subconsciente, um subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio como um
filme que de repente, movido por qualquer estimulo, se projecta na
consciência como num écran. Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não
distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito
por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em
mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela
forma de ser, estar e viver que me torna sensível — como a película de um
filme — ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão
por esse ser e esse aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem
intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado
(que ora é mais nitido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.
Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado,
desordenado, numa sucessão incoerente de versos e imagens. Então faço uma
espécie de montagem em que geralmente mudo não os versos mas a sua ordem. Mas
esta intervenção não é propriamente «inter-vir» pois só toco no poema depois
de ele se ter dito até ao fim. Se toco a meio o poema nas minhas mãos
desagrega-se. O poema «Crepúsculo dos Deuses» (Geografia) é um exemplo desta
maneira de escrever. É uma montagem feita com um texto caótico que arrumei:
ordenei os versos e acrescentei no final uma citação de um texto histórico
sobre Juliano, o Apóstata.
Algumas vezes surge não um poema mas um desejo de
escrever, um «estado de escrita». Há uma aguda sensação de plasticidade e um
vazio, como num palco antes de entrar a bailarina. E há uma espécie de jogo
com o desconhecido, o «in-dito», a possibilidade. O branco do papel torna-se
hipnótico. Exemplo dessa maneira de escrever, texto que diz esta maneira de
escrever, é o poema de Coral:
Que poema, de entre todos os poemas,
Página em branco?
Outra ainda é a maneira que surgiu quando escrevi
O Cristo Cigano: havia uma história, um tema, anterior ao poema. Sobre esse
tema escrevi vários poemas soltos que depois organizei num só poema longo.
E por três vezes me aconteceu uma outra maneira
de escrever: de textos que eu escrevera em prosa surgiram poemas. Assim o
poema «Fernando Pessoa» apareceu repentinamente depois de eu ter acabado de
escrever uma conferência sobre Fernando Pessoa. E o poema «Maria Helena
Vieira da Silva ou O Itinerário Inelutável» emergiu de um artigo sobre a obra
desta pintora. E enquanto escrevi este texto para a Crítica apareceu um poema
que cito por ser a forma mais concreta de dar a resposta que me é pedida:
Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente
Durante vários dias disse a mim própria: «tenho
de responder a Crítica». Sabia que ia escrever e sobre que tema ia escrever.
Escrevi pouco a pouco, com muitas interrupções, metade escrito num caderno,
metade num bloco, riscando e emendando para trás e para a frente, num
artesanato muito laborioso, perdida em pausas e descontinuidades. E através
das pausas o poema surgiu, passou através da prosa, apareceu na folha direita
do caderno que estava vazia.
Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não
o tinha pedido a mim própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema
falou quando eu me calei e se escreveu quando parei de escrever. Ao tentar
escrever um texto em prosa sobre a minha maneira de escrever «invoquei» essa
maneira de escrever para a «ver» e assim a poder descrever. Mas, quando «vi»,
aquilo que me apareceu foi um poema.
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