sábado, 16 de junho de 2018

Para uma análise do conto "Ramiro", in Bichos, Miguel Torga



“RAMIRO”

Se alguma vez a voz lhe saiu espontaneamente da  garganta, deve ter sido quando em criança disse as primeiras palavras, porque de há longo tempo a esta parte, ninguém lhe arrancava mais que um “Han”…
O silêncio melancólico das serras onde apascentava o seu rebanho quebrara-lhe a voz e a vontade de contactar com os seus semelhantes. Tal como os animais rastejantes ou não, que com ele conviviam no silêncio do Marão e com ele partilhavam não só o espaço, mas o mesmo mutismo, Ramiro via passar os dias e os anos, só, entre o céu e a terra.
Dir-se-ia que era desprovido de sentimentos, de sensibilidade! Ah!...
Mas não era essa a verdade. No coração do Ramiro, havia uma Rosa.
Rosa que era um espinho cravado no mais fundo do seu ser! Assobiar-lhe, como fazia com o seu rebanho, não resultaria, ele sabia isso. Dentro de si, o silêncio tinha alastrado tão completamente, que não tinha mais expressão vocal do que aquele assobio com o qual se entendia com as suas ovelhas e com o Laboreiro, o cão que o ajudava no pastoreio. E foi em silêncio profundo, que naquele dia vingou a morte da Mimosa, uma das mais bonitas ovelhas do rebanho, que em breve daria à luz, não fora a pedrada certeira que Ruela lhe assentou. Pobre Mimosa!... 
“Sem intenção”: defendeu-se o agressor! Tarde demais…
Silenciosamente, Ramiro ergueu a foice de lâmina afiada, que foi cair como um raio sobre a cabeça do infeliz, sem que nada a detivesse!

Apenas a serra, o velho e silencioso Marão testemunharam o desfecho daquela tragédia. E o silêncio continuou. Dentro e fora daquela alma, muda como um túmulo. Talvez o Marão nem tenha feito repercutir o eco daquele assobio, chamando as ovelhas para o redil!...

Elita Guerreiro *24/5/2018




RAMIRO PASTOR
(inspirado in Bichos de M. Torga)





Ramiro  era um pastor.
Das ovelhinhas mansas,
das cabritas traquinas
Dia e noite cuidava
Nunca, nunca as deixava
Sem sua protecção

Ele não falava
Do silêncio amigo
Era companheiro
Ao cimo dos montes
Com grande desvelo
Rebanho levava

Mas um belo dia
Apareceu sem aviso
Um pateta qualquer
Que sem  “ai” nem “ui”
Com uma pedrada
Uma ovelha matou

O porquê e o como
Não interessam pr’à história
É bastante saber
Que sem pinga de sangue
E o olhar esgazeado
O Ramiro ficou

E vai daí vê turvo
Num sofrimento tal
Que nem pensa nem espera
Sequer p’los depois
Loucura nos olhos
O instinto nos dedos
Pega a foice aguda
Atira-a pelos ares
E abre o malvado em dois


Mercedes Ferrari, 25/4/2018

ONDE AS TORGAS DESPONTAM

Quantos Ramiros por aí, como o Ramiro do conto do poeta Miguel Torga. Pastoreando o gado, o silêncio e a solidão.
Rápido se habituam a ouvir vozes que não as suas: as do gado, a do vento quando sopra, a da água que tomba do céu ou a voz do agressivo ribombar do trovão. Quem entende os pastores? As mulheres, os filhos, ou mesmo os donos de rebanhos não seus, que com eles negoceiam a pele de alguma ovelha para que se faça o samarro ou os ceifões e que na hora da entrega lha recusam.
Quem era Ramiro? Um religioso que escutava o «Padre João», um espiritual ou alguém com o dom da imperturbabilidade?
Embora fosse Março e as torgas despontassem, não acordavam os penedos. Era o seu assobio estridente que penetrava nos ouvidos do gado, ecoando fragas fora. Levantava-se antes do cão, não pedia sequer a bênção da mãe, para quem ter um filho assim não seria fácil… Costuma dizer-se “Para lá do Marão, mandam os que lá estão!” Ali não, ali mandavam três silêncios: o das fragas, o seu e o do seu coração, que não lhe permitia expressar o desejo que sentia por «Rosa». Um dia, ao cruzar-se com o rebanho de outro pastor, o seu olhar endureceu pela intromissão no seu rebanho. «Ruela» atingira uma das suas ovelhas, que agonizou. Foi a vez da foice de Ramiro falar, ceifando a vida de «Ruela». Espantaram-se as fragas! O incrédulo perfume das torgas ficou suspenso no ar! Intensificaram-se todos os silêncios, ainda mais o do homem que emitiu um assobio sibilante para que o rebanho regressasse ao curral.

Oh, quantos Ramiros por aí…

Adalberta Marques

Ramiro
Ramiro era um homem de alma pequena, acorrentada à negrura do silêncio, mais parecida com a aridez da serra do Marão, que o vinha moldando ao longo de vinte anos, na frieza das parcas palavras que as próprias fragas testemunhavam, aqui e além interrompido pelo bramido das reses que pastoreava.
Toda a expressividade do seu ser resumia-se a um olhar seco sem um pingo de brilho, no vazio do Marão e ao troar dum assobio como se do sibilar de cobra se tratasse.
Era neste mundo de silêncios, de coração fechado e frio, que se alimentava a desumanidade deste homem, pastor de rebanhos.
Neste conto, “Ramiro”, o autor expressa bem a face oculta de cada homem como este, tresmalhado do rebanho, a quem nem as torgas floridas eram capazes de despertar naquele mutismo um raio de felicidade.

Fernando Sousa.


"BICHOS” DE MIGUEL TORGA
“RAMIRO”

Com este Conto, Miguel Torga chama a atenção para diversos aspectos da vida do personagem principal: Ramiro, o pastor.

O isolamento social, do qual ele é vítima, deixa marcas devastadoras, levando a que ele se integre mais no seu rebanho do que na sua aldeia: perdeu a fala, não consegue exprimir-se, emite sons estranhos e assobios sibilantes. Toda esta situação faz com que Ramiro se desumanize, perdendo a sensibilidade humana e tornando-se, de certa forma, um ser monstruoso cujos actos acabam por ser excessivos.

Ruela, ao matar a ovelha Mimosa, não o faz propositadamente, mas Ramiro ama tanto o seu rebanho que a morte da ovelha é para ele como se fosse a “morte dum familiar”: num ímpeto violento, agarra numa “foice” e mata Ruela.
Não consegue ser capaz de dar valor ao acto que acabou de cometer: para ele, matou a ameaça, instantaneamente .

Miguel Torga, ainda abordando o amor, mostra-nos como Ramiro além do rebanho, também ama Rosa: vê-se isso na forma de a ollhar, quando ela passa por ele.

Apesar deste tipo de pessoas estarem à margem da sociedade, pela qual são rejeitados, não quer dizer que não nutram fortes sentimentos: eles sentem amor pelos seres de quem gostam.

Por maior que seja a ironia, o isolamento social existe cada vez mais nas sociedades ditas modernas, apesar de inundadas de meios de comunicação. As pessoas ficam completamente fechadas, num isolamento total, como Ramiro. Pode parecer invisível à primeira vista , mas existem.

Hoje, o que mais há são Ramiros… nem sempre damos conta de que eles estão bem perto de nós, sozinhos com o seu próprio isolamento…

Azeitão 28-05-2018

Carmo Bairrada

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