“RAMIRO”
Se alguma vez a voz lhe saiu
espontaneamente da garganta, deve ter sido quando em criança disse as
primeiras palavras, porque de há longo tempo a esta parte, ninguém lhe
arrancava mais que um “Han”…
O silêncio melancólico das serras onde apascentava
o seu rebanho quebrara-lhe a voz e a vontade de contactar com os seus
semelhantes. Tal como os animais rastejantes ou não, que com ele conviviam no
silêncio do Marão e com ele partilhavam não só o espaço, mas o mesmo mutismo,
Ramiro via passar os dias e os anos, só, entre o céu e a terra.
Dir-se-ia que era desprovido de
sentimentos, de sensibilidade! Ah!...
Mas não era essa a verdade. No coração
do Ramiro, havia uma Rosa.
Rosa que era um espinho cravado no mais
fundo do seu ser! Assobiar-lhe, como fazia com o seu rebanho, não resultaria,
ele sabia isso. Dentro de si, o silêncio tinha alastrado tão completamente, que
não tinha mais expressão vocal do que aquele assobio com o qual se entendia com
as suas ovelhas e com o Laboreiro, o cão que o ajudava no pastoreio. E foi em silêncio
profundo, que naquele dia vingou a morte da Mimosa, uma das mais bonitas
ovelhas do rebanho, que em breve daria à luz, não fora a pedrada
certeira que Ruela lhe assentou. Pobre Mimosa!...
“Sem intenção”:
defendeu-se o agressor! Tarde demais…
Silenciosamente, Ramiro ergueu a foice
de lâmina afiada, que foi cair como um raio sobre a cabeça do infeliz,
sem que nada a detivesse!
Apenas a serra, o velho e silencioso Marão
testemunharam o desfecho daquela tragédia. E o silêncio continuou.
Dentro e fora daquela alma, muda como um túmulo. Talvez o Marão nem
tenha feito repercutir o eco daquele assobio, chamando as
ovelhas para o redil!...
RAMIRO
PASTOR
(inspirado in Bichos de M. Torga)
Ramiro era um pastor.
Das ovelhinhas mansas,
das cabritas traquinas
Dia e noite cuidava
Nunca, nunca as deixava
Sem sua protecção
Ele não falava
Do silêncio amigo
Era companheiro
Ao cimo dos montes
Com grande desvelo
Rebanho levava
Mas um belo dia
Apareceu sem aviso
Um pateta qualquer
Que sem “ai” nem “ui”
Uma ovelha matou
O porquê e o como
Não interessam pr’à
história
É bastante saber
Que sem pinga de sangue
E o olhar esgazeado
O Ramiro ficou
E vai daí vê turvo
Num sofrimento tal
Que nem pensa nem espera
Sequer p’los depois
Loucura nos olhos
O instinto nos dedos
Pega a foice aguda
Atira-a pelos ares
E abre o malvado em dois
Mercedes Ferrari, 25/4/2018
ONDE AS TORGAS DESPONTAM
Quantos
Ramiros por aí, como o Ramiro do conto do poeta Miguel Torga. Pastoreando o
gado, o silêncio e a solidão.
Rápido
se habituam a ouvir vozes que não as suas: as do gado, a do vento quando sopra,
a da água que tomba do céu ou a voz do agressivo ribombar do trovão. Quem
entende os pastores? As mulheres, os filhos, ou mesmo os donos de rebanhos não
seus, que com eles negoceiam a pele de alguma ovelha para que se faça o samarro
ou os ceifões e que na hora da entrega lha recusam.
Quem
era Ramiro? Um religioso que escutava o «Padre João», um espiritual ou alguém
com o dom da imperturbabilidade?
Embora
fosse Março e as torgas despontassem, não acordavam os penedos. Era o seu
assobio estridente que penetrava nos ouvidos do gado, ecoando fragas fora.
Levantava-se antes do cão, não pedia sequer a bênção da mãe, para quem ter um
filho assim não seria fácil… Costuma dizer-se “Para lá do Marão, mandam os que
lá estão!” Ali não, ali mandavam três silêncios: o das fragas, o seu e o do seu
coração, que não lhe permitia expressar o desejo que sentia por «Rosa». Um dia,
ao cruzar-se com o rebanho de outro pastor, o seu olhar endureceu pela
intromissão no seu rebanho. «Ruela» atingira uma das suas ovelhas, que agonizou.
Foi a vez da foice de Ramiro falar, ceifando a vida de «Ruela». Espantaram-se
as fragas! O incrédulo perfume das torgas ficou suspenso no ar!
Intensificaram-se todos os silêncios, ainda mais o do homem que emitiu um
assobio sibilante para que o rebanho regressasse ao curral.
Oh,
quantos Ramiros por aí…
Adalberta Marques
Ramiro
Ramiro era um homem de
alma pequena, acorrentada à negrura do silêncio, mais parecida com a aridez da
serra do Marão, que o vinha moldando ao longo de vinte anos, na frieza das parcas
palavras que as próprias fragas testemunhavam, aqui e além interrompido pelo
bramido das reses que pastoreava.
Toda a expressividade
do seu ser resumia-se a um olhar seco sem um pingo de brilho, no vazio do Marão
e ao troar dum assobio como se do sibilar de cobra se tratasse.
Era neste mundo de
silêncios, de coração fechado e frio, que se alimentava a desumanidade deste
homem, pastor de rebanhos.
Neste conto, “Ramiro”,
o autor expressa bem a face oculta de cada homem como este, tresmalhado do
rebanho, a quem nem as torgas floridas eram capazes de despertar naquele
mutismo um raio de felicidade.
Fernando Sousa.
"BICHOS” DE MIGUEL TORGA
“RAMIRO”
Com este Conto,
Miguel Torga chama a atenção para diversos aspectos da vida do personagem principal:
Ramiro, o pastor.
O
isolamento social, do qual ele é vítima, deixa marcas devastadoras, levando a
que ele se integre mais no seu rebanho do que na sua aldeia: perdeu a fala, não
consegue exprimir-se, emite sons estranhos e assobios sibilantes. Toda esta
situação faz com que Ramiro se desumanize, perdendo a sensibilidade humana e
tornando-se, de certa forma, um ser monstruoso cujos actos acabam por ser
excessivos.
Ruela, ao matar
a ovelha Mimosa, não o faz propositadamente, mas Ramiro ama tanto o seu rebanho
que a morte da ovelha é para ele como se fosse a “morte dum familiar”: num ímpeto
violento, agarra numa “foice” e mata Ruela.
Não
consegue ser capaz de dar valor ao acto que acabou de cometer: para ele, matou
a ameaça, instantaneamente .
Miguel
Torga, ainda abordando o amor, mostra-nos como Ramiro além do rebanho, também ama
Rosa: vê-se isso na forma de a ollhar, quando ela passa por ele.
Apesar deste
tipo de pessoas estarem à margem da sociedade, pela qual são rejeitados, não
quer dizer que não nutram fortes sentimentos: eles sentem amor pelos seres de quem
gostam.
Por maior que
seja a ironia, o isolamento social existe cada vez mais nas sociedades ditas
modernas, apesar de inundadas de meios de comunicação. As pessoas ficam
completamente fechadas, num isolamento total, como Ramiro. Pode parecer
invisível à primeira vista , mas existem.
Hoje, o que mais
há são Ramiros… nem sempre damos conta de que eles estão bem perto de nós, sozinhos com o seu próprio isolamento…
Azeitão
28-05-2018
Carmo
Bairrada
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