sábado, 1 de junho de 2019

Reflexões sobre o "Sermão do Bom Ladrão", Padre António Vieira (por Carmo Bairrada)



««PADRE ANTÓNIO VIEIRA»»
(1608 – 1697)

 PARTE I

a) - Quem foi Esta FIGURA?

O percurso de vida desta figura maior da Igreja Católica e das letras portuguesas não foi fácil. Atravessou a maior parte da sua vida ao longo de quase todo o Séc. XVII, entre Portugal e o Brasil que, à época, era uma colónia portuguesa.

Nasce em Lisboa, em 06/02/1608 na freguesia da Sé e parte com a família para o Brasil. Aos 6 anos de idade foi estudar num colégio jesuíta e aos quinze anos ouviu pela primeira vez a pregação de um sermão sobre os horrores do Inferno, que o deixou muito perturbado.

Aos dezanove anos, já leccionava retórica. Mais tarde decidiu entrar para o seminário. Nos finais de 1634 foi ordenado Jesuíta.

Rapidamente deu nas vistas com os sermões que escrevia e depois pregava. Os espaços onde ele ia estavam sempre cheios de gente  para o escutar.

Os  Sermões eram escritos com base em princípios filosóficos, o “conceito predicável”, dizendo que  “só se ocupava de assuntos religiosos.”

Não foi bem assim, como se veio a constatar, porque além de ser filósofo, foi padre, professor, prosador de uma retórica exímia, político, diplomata, e foi também um homem que sempre esteve do lado dos fracos e oprimidos.

Lutou fortemente pelos “Direitos Humanos” dos Índios, dos Negros e dos Judeus convertidos chamados cristãos-novos, que na altura eram perseguidos ferozmente pela Inquisição.

O Pe. António Vieira, nos seus Sermões, continuava a chamar a atenção para aqueles temas e para a corrupção instalada, a nível da Administração local e também para a forma como os escravos eram tratados.

Foram todos estes temas “fracturantes”, aliados à sua defesa do Quinto Império que, posteriormente, o levariam a ser detido pela Inquisição, que o julgou e condenou a dois anos de prisão.

Passado algum tempo, o Pe. António Vieira escreveu da prisão a influentes Senhores: ao Papa e a D. João IV, seu amigo pessoal, no sentido de lhes pedir auxílio e apoio para as suas causas, conseguindo assim sair debaixo do jugo do Santo Ofício.

Foi absolvido, viajou directamente para Roma e em seguida para a Holanda, a fim de discutir o modo como eram tratados os escravos das propriedades dos holandeses estabelecidos em terras do Brasil, à época colónia portuguesa.

Por essa altura, em Lisboa, a vida não estava fácil. A Revolução de 1640 que pusera fim a sessenta anos de domínio Espanhol Filipino e trouxera a Portugal a autonomia e a Independência, não fora de todo  suficiente.

B) – “O BARROCO” - A MUDANÇA RADICAL

Perto do final do Séc. XVI, termina o período Renascentista, que foi um tempo de renovação científica, literária e artística, escorado nos modelos da Antiguidade Clássica.

Já nos finais do Séc. XVI e início do Séc. XVII, começa um novo período a que se deu o nome de Barroco  e que revolucionou o estilo estético das artes plásticas e da literatura até meados do Séc. XVIII. É oposto ao classicismo, donde provém, contrastando pela pujança e formas dominadas pela extravagância.

Com regras muito próprias, o Barroco iria mudar, radicalmente, o modo de viver e pensar de toda a sociedade portuguesa.

Teve um papel preponderante em toda aquela época e, ao contrário do Renascimento, coloca o poder temporal e religioso acima da sociedade, criando grandes divisões e conflitos, quer políticos, quer religiosos. Sobretudo estes últimos, que dividiriam o homem entre o que era  “A Vida Terrena” e “A Vida Divina.”

Se a vida terrena sofreu grandes mudanças no seu dia- a- dia, o mesmo aconteceu nas artes e na literatura. Foram feitas obras grandiosas como: Palácios, Palacetes, Igrejas, Capelas, Túmulos Funerários, Fontes, etc…, todos eles de um luxo desmesurado.

O interesse era mostrar “grandeza e poder absoluto”. A arte barroca tinha então o importante papel de: “Convencer/Conquistar e Impor Admiração”.

o Barroco na Literatura PORTUGUESA assentava em dois pilares: «O Cultismo e o Conceptismo»

O  CULTISMO
Caracterizava-se por utilizar o preciosismo do vocabulário e jogos de palavras para expressar ideias, valorizando a forma textual com o emprego de muitas figuras de estilo:
O CONCEPTISMO
Centrava-se no uso do “pensamento lógico”, sempre valorizado por um texto de retórica perfeita. O seu objetivo era convencer e instruir o leitor.


PARTE II
 o sermão do bom ladrão”
- E SUA ESTRUTURA -


Decorria o Ano de 1665 e o Pe. António Vieira, que vivia para lá do Atlântico, começou a ter muitas inquietações que lhe tiravam o próprio sossego. O que via à sua volta não podia deixar de ser transmitido ao Rei e às mais altas instâncias do poder.

Para o efeito começou a escrever um sermão, ao qual deu o nome de “ Sermão do Bom Ladrão”- para que todos ouvissem e prestassem atenção ao que ele iria pregar, aquando da sua visita secreta a Lisboa.

Depois de uma grande tempestade nos Açores, aportou à Capital, e soube que a pregação seria feita na Igreja da Misericórdia, um lugar de piedade, e não na Capela Real onde por costume se tratavam os assuntos de estado, na presença do Rei, dos seus ministros e mandatários.

Entrou na Igreja e, num ímpeto quase profético, tomou o púlpito como sendo a sua tribuna política e social, começando com o Conceito Predicável ou Tema da Pregação:
           
INTRÓITO (1ª. PARTE)
           
            “A pregação deste meu sermão que deveria ter sido feita
            na capela real, e não o foi, assenta na seguinte teoria:

            […] Nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os             ladrões podem ir ao Inferno sem levarem consigo os reis.
           
            Isto é o que hei-de pregar. Ave Maria”
                                                                                               (Cap. I) 
                                
O intuito de Pe. António Vieira era que:

 “Todos devem imitar ao Rei dos Reis”; e todos têm muito que aprender nesta última ação de sua vida”.
                                                                                                                      (Cap. I)                       Dá exemplos:

- Dois ladrões que tinham sido acusados, condenados à morte e cruxificados (sem direito a qualquer defesa);

” um deles o bom ladrão pediu a Cristo que se lembrasse dele no seu reino, o Senhor teve a ideia de que ambos se viessem a ver no Paraíso”.
(Cap. I)
O Pe. António Vieira dá a conhecer ao rei o pecado da corrupção passiva e activa e ainda a cumplicidade do silêncio permissivo, mostrando a sua visão crítica acerca do comportamento imoral da nobreza da época.

“Levarem os reis consigo ao Paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas acção tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.

Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”.
(Cap. II)
ARGUMENTAÇÃO (2ª. PARTE)

No sermão que hoje é analisado, quis mostrar à audiência que o escutava, a sua visão crítica sobre o tema do  Furto: havia a necessidade de perdoar e reflectir sobre a maneira como se devia agir:
                                                                                                         
            -“não havendo restituição do furto, não se pode alcançar a salvação.”
      - “o pecado só não era perdoado quando o ladrão não tinha qualquer
hipótese de fazer a restituição do furto.”
(Cap. III)

Segundo o Orador, existe uma diferença entre o ladrão que rouba, sendo rico, e aquele que é miserável e, por isso, age erradamente.
           
Ex: O Pirata que foi levado à presença do Imperador Alexandre Magno, por ter roubado uma barca, foi severamente repreendido. O Pirata, por fim, diz:             

 “Basta, Senhor, que eu, porque roubo uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais  uma armada, sois Imperador?”
- “Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.”         
                                                                                                                      (Cap. IV)


[…] de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e da mais alta esfera…
Vieira insinua com uma metáfora que “os reis têm um passaporte para furtar”.
                                                                                                                      (Cap. V)

A presença de administradores e mandatários do reino em vários cargos de responsabilidade, e que são culpados por roubos, fazem com que o rei seja, ele próprio, cúmplice dos seus furtos, e os ladrões “os levem consigo ao Inferno”.

Primeiro, porque os reis lhe dão os ofícios e poderes com que roubam;
Segundo, porque os reis os conservam neles;
Terceiro, porque os reis adiantam e promovem a outros maiores:
finalmente, porque sendo os reis obrigados sob pena de salvação, a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem”.
(Cap. VI)

Ao longo da pregação deste sermão e sob o tema da “culpa do furto”, o Pe. António
Vieira recorre à história de Adão:

             “ Ponhamos o exemplo da CULPA onde não a pode haver”:
           
            Deus pôs Adão como responsável único de tudo que foi criado, à excepção       de uma Árvore.
            Só que houve o furto, de um dos seus frutos.
            Faltavam poucas letras a Adão para ser Ladrão, e ao fruto para ser Furto       não lhe faltava nenhuma…”      

E quem foi que pagou o furto?
Como Adão não guardou o preceito, houve roubo, ficou sujeito à morte.

-O que fez Deus neste caso?
Expulsou-o do Paraíso, e deu-lhe cem anos de vida.
-Porque razão Deus não executou a pena de morte…?
Quando as pessoas têm uma certa importância na sociedade é preciso vir a público mostrar – o Bem -.
Justo é que apesar de merecerem a morte, se lhes permite viver.
     (Cap. VI)

Continuando o sermão, o Pe. António Vieira pôs em evidência as mil e uma maneiras da arte deFurtar”: o verbo usado nos modos Indicativo/Imperativo/Mandativo/Optativo/Permissivo e Infinito  “são conjugados em todas as pessoas e ainda furtam por todos os tempos, (por todos os modos desta Arte).”
                                                                                                                       (Cap. VIII)                                                                                                                                      

PERORAÇÃO OU EPÍLOGO (3ª. PARTE)

Finalmente, o pregador lembra os factos mais importantes da sua pregação, pedindo aos fiéis que sigam a verdade, e convida todos que o escutaram, para praticarem as virtudes propostas; - citando Stº. Hilário - 

 “O que não se pode calar com boa consciência, ainda que seja com repugnância, é força que se diga.”
            (Cap. XIV)
           
Finalmente torna a pedir para que todos com exemplo, e inspiração:

[…] impidam os furtos futuros para que os ladrões em vez de serem levados ao Inferno, fossem diretos juntamente com os reis ao Paraíso”. […]
(Cap. XIV)


O Pe. António Vieira, considerado uma das maiores figuras das letras do seu tempo, e chamado por Fernando Pessoa de “Imperador da Língua Portuguesa”, morre na Baía em 18/07/1697, com 89 anos. O seu corpo é transladado para a Sé de Lisboa e é sepultado na Igreja do Colégio.


OBRA: O Sermão do Bom Ladrão
Autor: Pe. António Vieira
Editora: Círculo de Leitores (2º. Edição 1979-Clássicos da Língua Portuguesa)

Leituras de apoio:
Uso de frases - chave retiradas do próprio Sermão:
Dicionário da Língua Portuguesa 5ª. Edição – Porto Editora

Opinião: (Séc. XVII vs Séc. XXI)

“O Sermão do Bom Ladrão”
É uma obra intemporal. Estamos no Séc. XXI e,  passados tantos séculos, ainda continua atualizado. Hoje, mais que outrora (?), somos informados pelos Media, como se praticam impunemente os crimes de grande gabarito: “Casos Ilícitos”,  “Gestões Danosas”, “Gestões Fraudulentas”, “Corrupção ao mais alto nível”, “ Desrespeito pelas diferenças entre Seres Humanos”, etc.
Onde andam os culpados? Porque não são julgados? Porque não estão presos?

Como trabalha a Justiça? Os processos arrastam-se nos tribunais anos após anos, até que a maioria deles acaba por prescrever, devido a pedidos de recurso das sentenças feitos pelos advogados dos corruptos endinheirados. Quem paga tudo isso? NÓS, O POVO!

A Justiça continua:
CEGA – “porque tem os olhos vendados”; SURDA – “porque os ventos que lhe chegam aos ouvidos são de alta quilometragem”; MUDA – “porque quando se lembrar de abrir a boca, se conseguir, a Balança pode oscilar para o lado menos conveniente”. HIRTA – “como a estátua que a representa, ali ficará, até que um dia ela decida explodir num rugido tão forte, que possa ser ouvido por todos nós.
A partir desse momento, sim! Far-se-á JUSTIÇA”.

Azeitão, 17-11-2018                                                           
Carmo Bairrada

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