quarta-feira, 26 de abril de 2017

Análise do conto "A Praia" de Sophia de Mello Breyner


Pequena análise do Conto “A praia” de
Sophia de Mello Breyner Andresen


No conto, Sophia, enquanto narradora da história, continua a preencher-nos com a sua sensibilidade através de sensações visuais, olfactivas e auditivas, bem como os tamanhos, os cheiros e contrastes de cores.
Tudo ultrapassa o âmbito do que é material, para atingir um grau de grande simbolismo.

Ao começar a ler o Conto, apercebemo-nos de que a história se passa num antigo Clube, que através das suas janelas deixava passar “o cheiro a maresia e a fruta, e as músicas tocadas ficavam suspensas das árvores e das estrelas, e na noite escura e azul, passava o rolar do mar, tudo isso envolvia o Clube, as suas paredes e janelas, e as suas mesas e cadeiras. E envolvia ainda, agudamente, uma por uma cada pessoa”.

Tinha a humidade das muitas invernias já passadas e da maresia trazida pelo próprio mar. Tudo passando pelas coisas, e pessoas, e pela própria Natureza. Havia por isso uma alternância temporal entre o passado e o presente, através do qual a memória se reactiva, mas contudo existe outro lado que é, precisamente, o da parte reflexiva sobre a condição humana.

Estes dois campos no texto fundem-se, porque a narradora atribui à memória um relevo especial, sendo que uma é a narração duma fase da sua juventude, que tem a ver com o tempo vivido (o passado), e a outra com o tempo contado (o presente).

Apesar da escrita ter um grande fluir na sua dinâmica transmite-nos um tempo parado-suspenso, à espera de uma vida verdadeira (o futuro). Esta temporalidade manifesta-se por três situações:

         - Os que há muito esperam o tempo final (a morte);
- Os que no presente estão ausentes e alheios a tudo que   os rodeia, e vivem condicionados ao passar das horas (os mortos-vivos);
- O futuro só continuará com as gerações mais novas (com o princípio de vida, que ainda não aconteceu).

Tudo naquele espaço dava a sensação da espera a um regresso ao passado, que nunca mais chegava.
Toda a fusão entre o real e o sonho é demonstrado por essa “ESPERA”, que faz atingir um certo grau de alucinação nas pessoas.


A narradora faz-nos notar que existe uma fronteira entre dois mundos, (“a Vida e a Morte”), espelhada nos quatro jogadores de cartas, que esperam a morte, e o homem que através do seu relógio vai vendo as horas passar.
O “Jogo e o Relógio” são, precisamente, a Metáfora da fronteira da “ESPERA.”

Como Hengel dizia:

- A passagem do Nada ao Ser, e do Ser ao Nada
                         (A)                   (B)

A) – Nascimento / Início da Vida
B) – Morte / Fim da Vida

Quando já tarde os jovens saem daquele ambiente fechado e suspenso no tempo, e vão para a rua, sentem o sopro do mar que os cobre, que os rodeia e que os invade. O nevoeiro que caía tinha mudado completamente a paisagem.

A narradora chama-nos a atenção para o efeito de antagonismo entre os dois espaços: o claustrofóbico e o da grandeza do mar, que se vai recriando a si próprio, enquanto destino, ou seja como princípio de vida e de morte. Simbolismo temporal, que não é individual, mas sim colectivo, que se vai desenvolvendo ao longo do Conto.


Azeitão, 26-03-2017

Carmo Bairrada


RECORDAÇÃO DA JUVENTUDE
SOPHIA DE MELLO BREYNER, “ A PRAIA”

O local onde se passa o acontecimento a que Sofia alude tem
grande importância no decorrer de toda a narrativa, passada
naquele “Verão longínquo”! Sempre o mar, presente em quase
todos os seus escritos. “Entre as casas brancas na noite
escura e azul, passava o rolar do mar”! Sensível a tudo e
atenta a tudo o que em seu redor se passava, a narradora
recorda como era grande e quadrado o grande casarão, as
cores que cobriam as paredes, ”pintadas de amarelo e as
varandas com grandes verdes”! Sensações visuais que a sua
mente gravou, num ambiente de província, onde a pacatez
impera. “Cheirava a maresia e a fruta“: sensações olfactivas,
que dão a quem lê a ideia da presença constante do mar. A
brisa ligeira, na amenidade da noite, misturava cheiros e sons
e vinha agitar a folhagem das árvores. A música, o barulho do
mar, as cores e os cheiros “envolviam” quem por ali se
movimentava. Os músicos que compunham a orquestra,
embora jovens, envergavam fardamentos, “smokings velhos
esverdeados.” Tinham pouco dinheiro, pouca fama! “Ainda
assim animavam as noites de quem queria dançar ou
simplesmente escutar!” “Vinham duas vezes por semana”,
“ Deviam ser resignados ou revoltados”! Era a passividade de
quem não espera mais do que o presente lhe oferece! “Espero
que fossem revoltados é menos triste.” Esta passividade
estendia-se a uns poucos, que na sala de jogo” pareciam
condenados à morte tentando entreter as suas últimas horas”.

A orquestra terminou a sua actuação e os músicos saíram.
Sabe Deus por onde… A narradora “nunca os viu saír por
nenhuma porta, talvez se diluíssem no ar”! A noite continuava
serena, com o rolar do mar, os cheiros, misturados e
envolventes! Muito vagamente, também o passado se
misturava ao presente, apenas levemente tocado pela
esperança do futuro, assim como uma espera, como se “D.
Sebastião” pudesse voltar!... Parecia esquecido no nevoeiro da
memória o tempo que se vivia!
O som duma telefonia veio lembrar a turbulência em que o mundo vivia. Eram tempos de guerra. Com tropas avançando sobre povos inocentes, em contraste com a passividade daquela sociedade provinciana, embalada pelo rolar do mar e perfumada pelo cheiro da fruta, cuja juventude mal sentira ainda um “leve rumor de amores
adolescentes.” Quase todos partiram. Mas aquele homem “alto e magro como uma árvore no Inverno” veio sentar-se à
mesa com os restantes jovens. Trazia na mão o seu copo e
no olhar uma mistura de passado e presente. “ Era mesmo
como se ele tivesse rejeitado todo o destino, toda a vida
vivida !  “E nele também aquela passiva conformação, como se
“lhe bastasse aquele momento, aquele bar, aquela conversa,
aquele copo”. “Como se vivesse a uma vida que não era a sua,
“ como os músicos da orquestra que usavam os seus fatos
alugados”!: um personagem que na narrativa desempenha um
papel de tanta sensibilidade e perfeição, “que até na própria
madeira da mesa a sua mão pousava com ternura!” O seu
olhar, como uma chama ardente, ultrapassou aquele momento
e como se falasse apenas para si recitou:
“Á memória longínqua duma Pátria
Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos.”
Saudade, mágoa, recordações de tempos idos ou a espera
constante num futuro que tarda? “Era como um marco que
dissesse: “Daqui em diante o mar não é mais navegável”.
Levantou-se foi ouvir o noticiário. Ao longe o apito do
combóio. Longe como a guerra, mas presente como o barulho
do mar, como o cheiro a fruta, como a pintura amarela com
os grandes verdes do casarão quadrado, onde recitou em
Inglês…
There is a sea
A far distant sea
Beyond the farthest line
Where all my ships that went as tray
Where all my dreams of yesterday
Are mine
Á saída, “o nevoeiro tinha transfigurado tudo.” Mas o cheiro do
mar persistia! E continuará para além da guerra, para além do
futuro de Sofia que tanto o amou!

Elita Guerreiro 27/3/2017

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