“ O MORGADO E O
FERRADOR”
CONTO
(A
PARTIR DAS PERSONAGENS “ABADE DE VARZIM”
e “O DONO DA CASA” de “O Jantar do Bispo”, in Contos Exemplares)
Na pequena aldeia de gente humilde e
trabalhadora, os seus habitantes trabalhavam de sol a sol. As crianças deixavam
a escola cedo para ir trabalhar nos campos e assim ajudar os Pais a sustentar a
Família. Tudo na aldeia e ao seu redor pertencia a uma só pessoa: “O Senhor da
Casa Grande”. Os filhos estudavam na cidade, onde gastavam sem nenhum proveito,
a fortuna que o Pai amealhara na exploração dos trabalhadores, homens, mulheres
e crianças, que davam o suor do seu rosto, no amanho das terras, no corte das
árvores, no tratamento dos animais, enfim…
Todo o ano havia trabalho! “O Senhor da
Casa Grande” pagava, sim senhor…Mas os míseros tostões mal davam para alimentar
dignamente quem humildemente o servia! Havia na aldeia alguém que enfrentava,
sem receio, a arrogância do “Morgado”, como o povo chamava ao “Senhor Da Casa
Grande!”
Era o velho ferrador, o “Ti Luís”!
Vindo ninguém sabe donde, ali se estabeleceu, casou e por ali foi ficando!
Ali lhe embranqueceram os cabelos e a
sua barba branca e o seu carácter cordial e simpático tornaram-no numa figura
respeitada na aldeia! As crianças não o temiam, os rapazes pediam – lhe
conselhos e os mais velhos gostavam de ouvir falar num vindouro tempo, no qual
todos seriam iguais! Ora o “ Morgado” tinha um tesouro que todos bem conheciam:
a sua linda égua branca à qual dera o nome de “Pestanuda”.
Era realmente um lindo animal! De belos
olhos expressivos e longas crinas sedosas, era muito meiga e elegante! Mas toda
esta beleza e elegância necessitavam cuidados e a única pessoa qualificada para
tal era o ferrador! O “Morgado” não
gostava das “ideias avançadas”, como ele chamava à maneira de pensar do “Ti Luís
“, que dizia influenciar os “Broncos “, assim se referia ele às famílias que
para ele trabalhavam! Naquele dia, “ Pestanuda “ coxeava mesmo muito e não
consentia que o dono lhe tocasse! E lá foi o “Morgado”, arrogante senhor,
ordenar ao velho ferrador que tratasse o seu “tesouro”
-
Ora deixe lá Vossa Senhoria a rédea, que o resto é comigo!
Conforme falava, aproximava-se do
animal, olhando- a nos olhos! A sua mão rude afagava-lhe ternamente a longa
crina. Lentamente, a “Pestanuda” cedeu, deixando a sua elegante patinha ao
cuidado do ferrador. Nem estremeceu, quando lhe foi retirado o espinho que a
magoara!
- E agora?- perguntou de sobrolho
carregado o “Senhor da Casa Grande.“
- Agora, vá Vossa Senhoria à sua vida,
que a bela “Pestanuda” lá vai ter. Eu mesmo lha vou entregar, quando estiver
capaz de andar. Já com um pé na soleira da porta, o “Morgado” retrocedeu e
quase encostando a sua cara vermelhona às barbas imaculadas do ferrador,
berrou:
- Então vossemecê pensa que eu vou deixar a
coisa que melhor tenho, nas mãos de alguém com ideias tão ruins como as suas?
Ora vá lá dar conselhos aos”Broncos”que lhos pedem! A minha égua é muito minha!
Sorrindo, o ferrador retorquiu:
- Valha-nos Deus, senhor” Morgado”!
Então
Vossa Senhoria compara o seu animal,
que é muito inteligente, sim senhor, aos seres humanos que lhe põem o pão na
mesa e lhe tratam da casa onde vive?
Fora de si, o “ Morgado” respondeu e
perguntou ao mesmo tempo:
- Quer vossemecê dizer que o “Bronco”
sou eu? Eu que dou esmola aos pobres, que vou à missa todos os Domingos, que
construí uma escola e mandei a minha Filha ensinar os Filhos desta gente…
- … que os tira de lá, mal aprendem a
escrever o seu nome! Vossa Senhoria, não quer ver que o império que criou
subjuga esta pobre gente? Como podem frequentar a escola se têm que trabalhar?
Pague aos Pais o valor justo pelo seu trabalho, para que os Filhos possam
estudar!
- Pobre gente, diz vocessemecê? Pobres
são os que não podem trabalhar e vão à minha porta pedir esmola!...
- Que o não faria se o senhor tivesse
dado às Famílias condições para os tratar e sustentar!
“ O “Morgado”, furioso, gritou-lhe:
- Acuso-o de rebelião na minha aldeia,
de virar as pessoas contra quem as sustenta!
Sem se poder conter, o ferrador retorquiu:
- E eu acuso-o de desumanidade, de
falsidade fanática e imodéstia!
Como se entendesse as palavras do velho
Ti Luís, a “ Pestanuda”, na cama de feno onde repousava, relinchou, sacudiu a
bela crina e chegou o focinho cor-de-rosa ao avental de couro do ferrador!...
Elita Guerreiro* 25/ 11/ 2016
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