segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Poemas de Sebastião da Gama (mais alguns...)

O ZAMBUJEIRO
Deus disse: "O Zambujeiro nasça".
Viril, rompeu da terra o Zambujeiro.
O tronco é o dum homem das montanhas.
São mãos de cavador seus ramos. Só as folhas,
Delicadas, suaves... Pela noite,
Quando tudo se cala, mesmo os pássaros,
O Zambujeiro canta...
(in Sonho, “Zambujeiro”,69)


O OUTONO É TRISTE
Aonde estou não há outono. O Outono é triste…
Aqui não deixam nunca as folhas de ser verdes
E há arelva e os rebentos e a alegria dos pássaros…
E os sítios em que amámos?... Vou contigo, Mulher,
Vamos de braço dado aos sítios de outro tempo…
Ah! Que não vemos musgo, muros velhos, mofo…
Saudades?... Nem ao menos saudades… Somos os dois tão jovens!...
Lá vai uma flor nova romper. Detemo-nos, deixamos
De respirar – e eis o botão rasgado e a flor aberta.
(Arrábida, 15/Nov/1951)
In Sonho, 71

HORA VERMELHA

Por que vieste, pensamento?
Já me bastava o Mar violento,
Já me bastava o Sol que ardia…
P’los meus sentidos escorria
não sei lá bem que seiva forte
que a carne toda me deixava
qual uma flor ou uma lava
num riso aberto contra a Morte.

Já me bastava tudo isto.
Mas tu vieste, pensamento,
e vieste duro, turbulento.
Vieste com formas e com sangue:
erectos seios de mulher,
as carnes róseas como frutos.

Boca rasgada num pedido
a que se quer e se não quer
dizer que não.
Os braços longos estendidos.
A mão em concha sobre o sexo
que nem a Vénus de Camões.

Aí!, pensamento,
deixa-me a calma da Poesia!
Aqui na praia só com ela,
virgem castíssima, sincera!…
Sua mão branca saberia
chamar cordeiro ao Mar violento,
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia.
Mas tu vieste, pensamento.
Tua nudez, que me obsidia,
logo, subtil, encheu de alento
velhos desejos recalcados,
beijos mordidos
antes de os ver a luz do Dia.

Vai-te depressa, pensamento!
Deixa-me a calma da Poesia.
Fique em minh’alma o só perfume
da cerca alegre de um convento.

Os meus sentidos embalados
numa suave melodia.
(Ah!, não nos quero desgrenhados
como quem volta de uma orgia).

E então meus lábios mais serenos
do que se orassem sobre um berço,
sorrindo à Vida,
sorrindo à Morte.
Ah!, não nos quero assim grosseiros,
ébrios, torcidos,
como depois de um vinho forte.
(In Cabo)

VERSOS AO MAR
Ai!,
o berço da tua voz,
e esse jeito de mão que tens nas ondas,
Mar!

Quando eu cair exausto
sobre as conchas da praia e fique ali
doente e sem ninguém,
hás-de ser tu quem me trate,
quero que sejas tu a minha Mãe.

Há-de embalar-me a tua voz de berço,
pra que a febre me deixe sossegar,
e hás-de passar, ó Mar!
pelo meu corpo em chaga,
as tuas mãos piedosas comovidas,
pra que sintas por mim as minhas dores
e eu sinta só o bálsamo nas feridas.

Como se fosses tu a minha Mãe…
Como se fosses tu a minha Noiva…

E hás-de contar-me histórias velhas
de Marinheiros…
Histórias de Sereias e de Luas
que se perderam por ti…
E se a Morte vier há-de quedar,
toda encantada, a ouvir-te,
e, sem ânimo já me há-de quedar,
Toda encantada, a ouvir-te,
E, sem ânimo já de me levar,
sorrindo, voltará por seu caminho
(não na sentimos vir, nem ir, tão de mansinho
se passou tudo, Mar!),
voltará de mansinho,
pé ante pé, pra não nos perturbar,
mas saudosa da tua voz de berço…

Sebastião da Gama
(In SERRA)

 “Elegia para uma gaivota”
Morreu no mar a gaivota mais esbelta,
a que morava mais alto e trespassava
de claridade as nuvens mais escuras com os olhos.
Flutuam quietas, sobre as águas, suas asas.
Água salgada, benta de tantas mortes angustiosas,
aspergiu-a.
E três pás de ar pesado para sempre as viagens lhe vedaram.
Eis que deixou de ser sonho apenas sonhado. É
finalmente sonho puro,
sonho que sonha finalmente, asa que dorme voos.
Cantos de pescadores, embalai-a! Versos dos poetas, embalai-a!
Brisas, peixes, marés, rumor das velas, embalai-a!
Há na manhã um gosto vago e doce de elegia,
tão misteriosamente, tão insistentemente,
sua presença morta em tudo se anuncia.
Ela vai, sereninha e muito branca.
E a sua morte simples e suavíssima
é a ordem-do-dia na praia e no mar alto.
(In Campo Aberto)

CLARIDADE

  De minha vida não sei
  senão que sou feliz.
  Lá o que fui ou fiz
  antes de ser o que sou,
  ai!, tudo me passou:
  só sei que sou feliz.

  E que me importa a cor
  das águas que passaram?
  Estas águas me bastam
  que vão correndo agora.
  Fosse o que fosse, a minha
  passada vida incerta
  (feliz ou desgraçada),
  foi uma porta aberta
  pra esta vida clara.
  Por isso eu a bendigo,
  a minha vida ida.

  Talvez as rosas nela
  tivessem bem mais cor,
  o Sol mais Luz e Amor,
  e música mais bela
  a viração, então;
  mais verde fosse o Mar...

   - Mas que vale o que foi,
   se, quanto vejo ou provo,
   tem tudo um gosto novo?...
   Se nada cansa ou dói?...
   Se as rosas, para mim,
   nasceram mesmo agora,
   e as aves e o Mar?...
   Se o Sol aconteceu
   ao mesmo tempo que eu
   olhei à minha roda
   e vi o meu presente
   a ser-me a vida toda?...
(in serra)

VERSOS PARA EU DIZER DE JOELHOS
(«... Daqui, donde mais livre se caminha.» FREI AGOSTINHO)

Ó meu país do Sol!
Pressentimento
da claridade celeste!
Ó fonte de Pureza!
Ó minha
Serra toda pintada de Esperança
e debruada de azul!
Reveladora maga
dos meus cinco sentidos, criadora
de aqueles que eu no tinha e tenho agora!
Ó minha outra Mãe,
que, num leito de flores e sorrisos,
me deste à luz de seda das Estrelas!
(Tuas carícias, Mãe!,
são os sonos que durmo, deslumbrados
e mansos, como dormidos
por meninos pequenos.)
Ó Serra aonde a cor
é luz extasiada!;
aonde a Primavera, quando chega,
já se encontra a si própria a esperar-se!
Ó minha amante sempre virgem
e sempre desejosa do meu corpo!
Ó palavra de Deus a exprimir-se
pelas bocas ingénuas das estevas!
Minha pomba da Paz!
Ó toda perfumada
do corpo de Agostinho!
Ó sorriso do Mar!, ó búzio longo
que prolongas a grande voz salgada!
Ó bordão
dos que já vinham cansados!
Nossa Senhora
desses a quem o Mundo deixou vincos
na alma!
Donzelinha saudosa que não sabe
se tem saudades do Céu,
se as tem de si!
Ó Serra aonde as noites
são camisas puríssimas de Noiva
e os crepúsculos são primeiros-beijos!
Pátria do mês de Maio!
Madrugada
do Dia que há- de vir p' la mão da Morte!

- Eu não quero cantar-te, minha Amante,
Minha Mãe, minha Irmã, minha Senhora;
eu só quero entender-te toda a vida
como te entendo, Serra! nesta hora.

(in Serra, pp 44-46)






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