sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O AMOR (comparação de textos)

     Tema: AMOR  (comparar
os textos seguintes):
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

É um nada Amor que pode tudo,
É um não se entender o avisado,
É um querer ser livre e estar atado,
É um julgar o parvo por sisudo;

É um parar os golpes sem escudo,
É um cuidar que é e estar trocado,
É um viver alegre e enfadado,
É não poder falar e não ser mudo;

É um engano claro e mui escuro,
É um não enxergar e estar vendo,
É um julgar por brando ao mais duro;

É um não querer dizer e estar dizendo,
É um no mor perigo estar seguro,
É, por fim, um não sei quê, que não entendo.

Autor Anónimo (Barroco, Fénix Renascida?)



Ah! Camões, se vivesses hoje em dia,
Tomarias uns antipiréticos,
Uns quantos analgésicos
E Prozac para a depressão.

Comprarias um computador,
Consultarias a Internet
E descobririas que essas dores que sentias,

Esses calores que te abrasavam,
Essas mudanças de humor repentinas,
Esses desatinos sem nexo,
Não eram feridas de amor,
Mas somente falta de sexo!

(comentário de uma aluna na prova de entrada à Universidade, comentando “Amor é fogo que arde sem se ver” de Luís de Camões. Obteve nota máxima.)
O Grito

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que e’ nosso.

São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.

E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.


Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.

E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.

David Mourão Ferreira

ANÁLISE DOS POEMAS (por Ana Maria Machete) em 08.11.2010

O inventor (?) do soneto foi Petrarca, um poeta italiano do sec XIV, 1304-1374, daí a designação de soneto petrarquiano, e é constituído por duas quadras, seguidas de dois tercetos. Possui uma estrutura lógica, com uma introdução, um desenvolvimento,  e uma conclusão, expressa no último terceto, a que se chama "chave-de-ouro", porque se constitui como resumo e simultaneamente descodificador do significado global do poema. Após uma viagem que fez para a Itália entre 1521 e 1526 o poeta português Sá de Miranda regressou a Portugal com uma nova estética poética introduzindo pela primeira vez o soneto.
O soneto em análise pertence ao período renascentista e foi escrito em verso heróico (decassílabo com sílabas tónicas nas posições 6 e 10) .
Poema 1 - Amor é fogo que arde sem se ver -  Luís de Camões – Sec. XVI

Amor é fogo que arde  sem se ver;
É ferida que dói  e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos mortais corações conformidade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


INTERPRETAÇÃO DA CHAVE DE OURO: Mas como pode o coração de um mortal, que ama, alcançar conformidade (harmonia), se o amor é tão  contrário a si mesmo?
Pela lógica, tudo o que é contrário em si mesmo não causa conformidade nem harmonia, gerando sofrimento. Logo, sendo o Amor contraditório, não poderá causar conformidade, mas sim sofrimento.

ANÁLISE DO SONETO - O soneto é construído em enunciados antitéticos, que compõem um todo lógico. Trata o conceito do amor na sua natureza paradoxal, e acentua o dualismo entre sensível e inteligível, matéria e espírito, finito e infinito.
Trata-se de uma definição poética do amor, como se o autor quisesse definir este sentimento indefinível e explicar o inexplicável. Coloca imensos contrastes para caracterizar este “mistério”, numa constante busca da compreensão e definição do sentimento amoroso, utilizando a  exploração de dois recursos estilísticos: antítese e paradoxo (sendo um paradoxo uma antítese levada ao extremo).
Nos onze primeiros versos, o sentimento Amor é efectivamente contraditório.
O aspecto material, sensível “ferida que dói”, “é dor que desatina” é oposto ao espiritual “em que se sente”, “sem doer”, como, de resto se pode observar ao longo de todo o soneto, culminando com a indagação final, a traduzir toda a perplexidade diante da total impossibilidade de se compreender o próprio amor.
O fogo é algo que não se esconde, pois é visto e sentido, mas para o poeta “Amor é fogo que arde sem se ver”, ou seja, apenas o sentimos, mas não pelos sentidos. Os nossos sentidos são limitados em relação às sensações ardentes do amor. Por isso, ele é comparado também a uma ferida cuja dor não é sentida “É dor que desatina sem doer”.
Lembrar aqui aquelas pessoas que amam, sofrem, mas continuam a amar: “é um contentamento descontente”. O facto de que nunca estamos satisfeitos no amor, mesmo que sejamos correspondidos, pois o amor “é nunca contentar-se de contente”.
Outro aspecto do amor é o desapego próprio deste sentimento: “é um não querer mais que bem querer / É um cuidar que ganha em se perder”. De facto, quem ama de verdade, não quer nada além do bem do outro, mesmo que o bem do outro seja que se fique longe dele. No amor verdadeiro,  perde-se para ganhar ou ganha-se ao perder.
O amor é individual e acarreta a solidão, quer seja por necessidades não supridas, quer seja porque às vezes é preciso ficar só e, assim, as pessoas sentem-se num “andar solitário entre a gente”.
Podemos dizer que a primeira vista é um jogo elegante e sonoro de linguagem, mas acabamos por descobrir o sentido profundo do poema. E aí encontramos a arte do autor: nesta capacidade de tratar ao de leve (como num jogo) um tema/sentimento universal que ainda hoje nos faz pensar profundamente nos complicados problemas psicológicos a ele associados. Tal como há 450 anos o amor continua a ser uma incógnita. Ainda ninguém conseguiu explicá-lo, nem as neurociências nem o Prof. António Damásio. (ou não sejam as ciências tentativas de compreensão do “nosso” universo)
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A morte de Camões, em 1580, marca o final do Renascimento, a que se segue o período Barroco: do final do século XVI ao final do sec. XVII, estendendo-se a todas as manifestações culturais e artísticas europeias e latino-americanas. Em Portugal vivia-se no período de domínio filipino, o sentimento de identidade nacional não corresponde à unidade política, esta falta (de correspondência) parece reflectir-se e expressar-se nas artes através do seu oposto: o excesso.
Na sua estética, o barroco revela a busca da novidade e da surpresa; o gosto pela dificuldade, pregando a ideia de que, se nada é estável, tudo deve ser decifrado; a tendência ao artifício e ao engenho; as imbrincadas construções sintáticas, a noção de que no inacabado reside o ideal supremo de uma obra artística, o gosto pela exuberância e ostentação, pelo efémero e pelo supérfluo.
A literatura barroca caracteriza-se  pelo uso da linguagem dramática expressa no exagero de figuras de estilo (quer a nível de conteúdo, quer formal, ex: sintaxe).
Poema 2 – É um nada Amor que pode tudo – Anónimo, Sec. XVI ou XVII

É um nada Amor que pode tudo,     9 (10?)
É um não se entender  o avisado,      10
É um querer ser livre e estar atado, 9 (10?)
É um julgar o parvo por sisudo;       10

É um parar os golpes sem escudo,  10
É um cuidar que é e estar trocado,  10
É um viver alegre e enfadado,           10
É não poder falar  e não ser mudo; 10

É um engano claro  e mui escuro,    10
É um não enxergar e estar vendo,    10
É um julgar por brando ao mais duro; 10

É um não querer dizer e estar dizendo, 10
É um no mor perigo estar seguro,    10
É, por fim, um não sei quê, que não entendo.                                                 11 (10?


ANÁLISE CRÍTICA: O autor retoma o tema de Camões, da difícil definição do amor. Utiliza também a arte do contraditório, mas apesar de recorrer às figuras de linguagem,  antítese e  paradoxo, não consegue igualar a estética do soneto de que lhe serviu de inspiração. É um amor sem expressão carnal e sem qualquer sensualidade; puro artifício retórico, jogo formal, ligeireza de sentido e expressões
A métrica, as palavras escolhidas, “parvo, sisudo, parar os golpes, enfadado, mudo, enxergar, escuro, duro”  não permitem alcançar a beleza, a riqueza e a profundidade anímica /intelectual dos versos camonianos. 
Há uma grande diferença em relação ao soneto de Camões, que no último terceto divide a chave de ouro do resto do poema
O autor prossegue até ao final com as contradições e remata de forma ligeira e superficial: é um não sei quê que não entendo. Poderá considerar-se que a  chave de ouro se encontra apenas no último verso, cacofónico (nãos e quês) e displicente.
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INTERPRETAÇÃO DO SEGUINTE TRECHO DE POEMA DE CAMÕES :
"Amor é fogo que arde sem se ver, 
é ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer".
Aluna pré-universitária deu a sua interpretação no séc. XXI: 
"Ah!  Camões, se vivesses hoje em dia,
tomarias uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão. 

Comprarias um computador,
consultarias a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,

esses calores que te abrasavam, 
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,
não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!" 


ANÁLISE: Camões, depois de tantas antíteses expressas ao longo de 11 versos, formula uma pergunta no último terceto ... e a  jovem oferece-lhe as soluções comuns  na actualidade.
Ele parece consumido e torturado pelas contradições intrínsecas ao sentimento do Amor; ela, mulher moderna, informada e desinibida, enumera as acções a efectuar:
·          Aponta-lhe soluções farmacológicas;
·          Sugere a aquisição de bens de consumo e  recurso à informática;
·          Aconselha a busca de informação ao nível da web,
·          e por fim, refere a prática do acto sexual como terapêutica para as dores, os calores, as mudanças de humor e os desatinos sem nexo.
Podemos falar de semelhança entre este texto e o soneto barroco, na ligeireza e no tom displicente com que o tema Amor é tratado e, por outro lado, na forma como responde, também no mesmo tom do último verso do soneto barroco, “um não sei quê, que não entendo” que é equivalente a “somente falta de sexo”. 
É esta a resposta pseudo-científica da grande professora, drª Web, divulgada através da net.
Parafraseando o próprio Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...”

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Poema 3 – Grito - David Mourão Ferreira (1927-96)– Séc. XX

Cedros, abetos,

pinheiros novos.

O que há no tecto

do céu deserto,

além do grito?

Tudo o que é nosso.



São os teus olhos

desmesurados,

lagos enormes,

mas concentrados

nos meus sentidos.

Tudo o que é nosso
é excessivo.



E a minha boca,

de tão rasgada,

corre-te o corpo

de pólo a pólo,

desfaz-te o colo

de espádua a espádua,

são os teus olhos,

depois o grito.



Cedros, abetos,

pinheiros novos.

É o regresso.

É no silêncio

de outro extremo

desta cidade

a tua casa.

É no teu quarto

de novo o grito.



E mais nocturna

do que nunca

a envergadura

das nossas asas.

Punhal de vento,

rosa de espuma:

morre o desejo,
          
nasce a ternura.

Mas que silêncio

na tua casa.

ANÁLISE DO POEMA: Neste poema há o princípio e há o fim: quando “morre o desejo, nasce a ternura. Mas que silêncio na tua casa”. A morte dá origem a um nascimento, esta morte tem um sentido positivo;
Existe também a percepção do real: o espaço, o tempo, as circunstâncias e o lugar: outro extremo desta cidade, a tua casa, o teu quarto.
Foi escrito em tetrassílabos, o que gera um ritmo fluente, fluído, rápido mas harmonioso e bem estruturado (o do “fazer amor” para o poeta).
Ela assume um papel mais passivo: “São os teus olhos desmesurados, lagos enormes, mas concentrados nos meus sentidos; ele assume um papel mais activo. “ a minha boca, de tão rasgada ... corre-te o corpo ... desfaz-te o colo...” 
Como figuras de estilo utiliza as enumerações e as repetições:  os “cedros, abetos, pinheiros novos”,  “tudo o que é nosso”; as comparações: lagos enormes; as metáforas: a envergadura das nossas asas, punhal de vento, rosa de espuma que são aqui utilizados como símbolos do masculino e do feminino e também do inconsistente, do fugaz e do efémero.
É um poema de amor, onde o mundo é resumido a dois e onde tudo à volta é deserto. No seu quarto eles são a expressão da natureza, e o céu/teto é habitado por tudo o que sentem ao fazer amor, ou seja a harmonia entre a natureza exterior e a natureza interior do par (tudo o que é nosso)
Os sentimentos, os sentidos e a sua expressão carnal, são consumados figurativamente num grito final.
Os cinco sentidos estão presentes nesta vertigem erótica:
·          o olfacto, através dos pinheiros novos, dos cedros e dos abetos;
·          a visão “são os teus olhos desmesurados”;
·          a audição, o grito e o silêncio, seu oposto;
·          o tacto  e o gosto, “a minha boca, ... corre-te o corpo”, é uma boca sensual que corresponde a todas as carícias                          
É uma história  cheia de volúpia:  de corpos, de excessos e de desejo, onde a dinâmica amorosa vai para alem do gozo carnal, é também feita de silêncios e de ternura; há conformidade/harmonia: 1 - do amor, que é sentido; 2 - da natureza, quando é consumado; 
 (Ana Machete, 08.11.2010)

2 comentários:

joaopcfurtado disse...

AMOR E SEXO

Se amor é fogo e muito arde
Não sei, mas sei que queima…
Muitos acham que é teima
Do coração novo e verde!

Mas como posso eu caduco
Sentir as mesmas palpitações
Que julgo sentidas por Camões
Enquanto apoio no manduco?

Pode-se afirmar que é sem nexo
E que é fruto da carência
Eu cá na eterna paciência
Afirmo que não é falta de sexo!

Se do carnal sexo desejado
Com pornografia se contenta
E volúvel quando se tenta
E tudo termina quando acabado…

O amor é eterno e profundo
E enquanto vive e dura
Mal mil faz e também muito cura
E mostra que somos únicos no mundo!

João Furtado

Praia, 08 de Novembro de 2010
as 11H30

QUIM TROVADOR disse...

Caro Amigo João Furtado

Sou franco e leal e, ao ler este seu poema-comentário, oferece-me dizer que, não gostei, nem pela forma, nem pelo conteúdo .
Desculpe-me, mas lhe mandarei particularmente, a minha crítica mais pormenorizada .
Um abraço
Joaquim Oliveira