Memórias do Cabo Oeste
*
Lá
no meio do nada, está ela.
Mesmo
se "nada" não existe, até porque ela está lá.
Está
ela, mais as aves, e os insectos, e o arvoredo de todos os tamanhos e de todas
as cores...
Numa
casa, perdida na colina, entre montanha coberta de pinhais e o curto vale, ao
longe o mar, janelas abertas nos quatro quadrantes para uma visão paradisíaca
da natureza, e a brisa, para um respiro fundo do ar...
...é
lá que ela mora.
Mora…
não mora. Está lá como se estivesse de férias; alugou ali porque o capricho
assim mandou… e a recordação!
Sozinha?
Nunca está sozinha. E para que serviriam os livros, se não fora para fazerem
companhia? E de que valeriam o chilrear dos passarinhos, as conversas dos gatos,
o latido longínquo de um canito, se não fossem uma companhia constante?
Quem
está só e se sente sozinho não tem ouvidos e não vê para além do limiar da sua
porta, para além do limiar da própria solidão.
Uma
curta estradinha de terra batida separa a casa do mundo. Por ela se chega ao
caminho asfaltado da civilização.
Caminho
que, jovem, percorria a pé, para ir às amoras ou aos medronhos, nas encostas da
serra, amarinhar pelas veredas - por vezes quase de gatas, de tão íngreme era a
encosta - para chegar ao forte abandonado, lá em cima, que chamavam a Peninha,
ou simplesmente para ir uns poucos quilómetros mais abaixo, à vila mais próxima
encontrar outras juventudes no único café, ou para descer à praia.
Mais
tarde a percorreria de automóvel, e agora... já mal atravessava aquele espaço
que, criança, chamara "o caminhito".
Por
enquanto, não precisava de mais nada: só de estar ali.
Vizinhos,
poucos e longínquos: um galo cantando e o cacarejar de galinhas e patos,
denunciavam a presença de alguém na pequeníssima aldeia de cinco ou seis casas,
mas os arbustos altos e os penedos escondiam felizmente essa vizinhança, cuja
visão só perturbaria a harmonia do lugar…
Um
citadino original comprara o moinho que se via da varanda, mas era longe. Não
incomodava... aliás desconfiava que ninguém lá morava, era só "para inglês
ver": os citadinos tinham dessas bizarrias!
Que
bem que estava, pensava ela, estendida na varanda com as mesinhas à volta
carregadas de livros, de cadernos, de binóculos, de lápis e canetas, relógios e
cigarros, cinzeiros e bomboneiras com frutos secos, a chávena do café na mão e
os olhos semicerrados esticados na direcção do mar...
"que bem que estou", pensava !
**
Foi
nesta aldeia que passou muitas temporadas quando era menina.
Muitos
eram os que alugavam as casas da aldeia para virem “mudar de ares” e sacudir a
poeira da cidade no meio da natureza - bastante selvagem na altura.
Não
havia electricidade, e água, só no poço!
Os
candeeiros a petróleo iluminavam os serões que, na verdade, depois de tanto
brincar, correr na natureza e respirar a forte brisa do oceano, não duravam
quase nada: depois de jantar, a cabeça já pedia cama!
E
era nesta aldeia, numa casinha alugada ao mês pelo tio Manel que, já
adolescente, passava fins de semana e dias de férias, no tempo do liceu.
Dias
despreocupados, que passavam lentos e límpidos, a bruma matinal e fresca, as
tardes solarengas e os serões quase inexistentes…
Às
vezes, no verão, um velhote vinha com material cinematográfico e projectava um
filme num lençol sujo pendurado na parede da minúscula (e única) mercearia da
aldeia: era uma festa e todos os moradores se juntavam no que servia de praça
central.
E
foi nesta aldeia que uma outra família alugou uma casa mesmo ao lado da casinha
do tio Manel.
Cinco
filhos; e o mais velho apareceu como um anjo de luz!
…
Uma estátua grega. Na altura, ela não sabia nada das estátuas gregas, mas algo
lhe dizia que aquela aparição tinha muito a ver com arte! E como tinha, sem o
saber, uma alma de artista, não conseguia tirar os olhos daquela obra…
E
foi assim que o interesse nas curtas visitas à aldeia cresceu a olhos vistos.
E
foi assim que se deslumbraram!
Porque
ela também era uma estátua.
Aos dezasseis anos, o primeiro amor é uma fonte de descobertas sem
fim!
E havia muito a descobrir.
Os
passeios à Peninha tinham agora outro encanto, a apanha das amoras era uma
delícia triplicada e os medronhos muito mais fáceis de recuperar com os rapazes
a subirem às árvores mais altas e a atirarem-nos para as saias que as meninas
levantavam para os receber!
E
os risos eram mais alegres e mais ruidosos; e voltavam para casa um pouco
ébrios de medronhos maduros, de ar puro e de uma sensação extraordinária de
liberdade.
Adolescentes
felizes…
Passava
o verão, voltavam as aulas, mas agora havia encontros na cidade. Os primeiros
encontros, meio clandestinos ao princípio, que se tornaram tão habituais que
deixaram de o ser.
E
com o regresso da primavera, lá iam
todos para a aldeia e recomeçavam as caminhadas, os piqueniques na serra
preparados pela mãe dos cinco e pela tia, e as descidas terrivelmente perigosas
à praia da Ursa - desconhecida na altura - por carreiros de cabras que seguiam
a encosta com o precipício à direita, os olhos postos no chão para não resvalar
…
Na
vila, o café onde as famílias se encontravam, as festas populares, a feira no
adro, tudo era pretexto para andar juntos e, como quem não quer a coisa, para
namorar.
Com
o passar dos anos e os cursos acabados, chegou o tempo de trabalhar
e
agora era à porta do escritório que ele a vinha buscar.
Iam
ao cinema, ao café, nos fins-de-semana de verão encontravam-se na praia ou na
piscina e agora, quando a levava a casa, entrava e ficava por ali um momento,
conversava com a avó, viam qualquer coisa na televisão e depois voltava para
casa.
Os
encontros eram quase diários e era implícito que tinham o futuro “marcado”:
iriam certamente casar!
E
foi então que, não se lembra por que razão, um navio partiu do cais de
Alcântara e levou o seu primeiro amor para África…
E quando voltou, o “francês” já a tinha levado consigo.
***
E
agora, estava ali, de volta à pequena aldeia onde passara tantas pequenas
aventuras que, na altura, pareciam gigantescas!
Já
não havia a família de 5 filhos e a “estátua” grega já tinha perdido o brilho
há muitas décadas.
Mas permanecia o sítio: mesmo se as belas silvas ao longo do caminho onde apanhava amoras tinham desaparecido e se os medronheiros tinham crescido e estavam agora fora do alcance, passeando entre os penedos sabia que o actual pequeno supermercado era na altura uma tasquinha muito pobre e pouco asseada, que naquela particular pedra se tinha sentado a ler, que por aquele atalho descera até à Ursa – e lembrava os arrepios de medo …
***
Tantas
décadas tinham passado e era como se tivesse sido ontem.
Era
uma viagem no tempo que tinha vindo fazer; não sabe porquê, não entende aquela vontade repentina de vir passar dois meses na
aldeia dos seus quinze anos e enquanto o pensamento corre como a brisa sem
encontrar obstáculos, vêm-lhe à mente mil razões e nenhuma faz sentido.
A única coisa que faz sentido é a paz de que usufrui ali, como se estivesse num lugar sagrado…
M.F. 10.7.21
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