segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Conto inédito, Mercedes Ferrari

 

Memórias do Cabo Oeste 

*

Lá no meio do nada, está ela.

Mesmo se "nada" não existe, até porque ela está lá.

Está ela, mais as aves, e os insectos, e o arvoredo de todos os tamanhos e de todas as cores...

Numa casa, perdida na colina, entre montanha coberta de pinhais e o curto vale, ao longe o mar, janelas abertas nos quatro quadrantes para uma visão paradisíaca da natureza, e a brisa, para um respiro fundo do ar...

...é lá que ela mora.

Mora… não mora. Está lá como se estivesse de férias; alugou ali porque o capricho assim mandou… e a recordação!

 

Sozinha? Nunca está sozinha. E para que serviriam os livros, se não fora para fazerem companhia? E de que valeriam o chilrear dos passarinhos, as conversas dos gatos, o latido longínquo de um canito, se não fossem uma companhia constante?

Quem está só e se sente sozinho não tem ouvidos e não vê para além do limiar da sua porta, para além do limiar da própria solidão.

 

Uma curta estradinha de terra batida separa a casa do mundo. Por ela se chega ao caminho asfaltado da civilização.

Caminho que, jovem, percorria a pé, para ir às amoras ou aos medronhos, nas encostas da serra, amarinhar pelas veredas - por vezes quase de gatas, de tão íngreme era a encosta - para chegar ao forte abandonado, lá em cima, que chamavam a Peninha, ou simplesmente para ir uns poucos quilómetros mais abaixo, à vila mais próxima encontrar outras juventudes no único café, ou para descer à praia.

Mais tarde a percorreria de automóvel, e agora... já mal atravessava aquele espaço que, criança, chamara "o caminhito".

Por enquanto, não precisava de mais nada: só de estar ali.

 

Vizinhos, poucos e longínquos: um galo cantando e o cacarejar de galinhas e patos, denunciavam a presença de alguém na pequeníssima aldeia de cinco ou seis casas, mas os arbustos altos e os penedos escondiam felizmente essa vizinhança, cuja visão só perturbaria a harmonia do lugar…

 

Um citadino original comprara o moinho que se via da varanda, mas era longe. Não incomodava... aliás desconfiava que ninguém lá morava, era só "para inglês ver": os citadinos tinham dessas bizarrias!

 

Que bem que estava, pensava ela, estendida na varanda com as mesinhas à volta carregadas de livros, de cadernos, de binóculos, de lápis e canetas, relógios e cigarros, cinzeiros e bomboneiras com frutos secos, a chávena do café na mão e os olhos semicerrados esticados na direcção do mar...

"que bem que estou", pensava !

** 

Foi nesta aldeia que passou muitas temporadas quando era menina.

Muitos eram os que alugavam as casas da aldeia para virem “mudar de ares” e sacudir a poeira da cidade no meio da natureza - bastante selvagem na altura.

Não havia electricidade, e água, só no poço!

Os candeeiros a petróleo iluminavam os serões que, na verdade, depois de tanto brincar, correr na natureza e respirar a forte brisa do oceano, não duravam quase nada: depois de jantar, a cabeça já pedia cama!

 

E era nesta aldeia, numa casinha alugada ao mês pelo tio Manel que, já adolescente, passava fins de semana e dias de férias, no tempo do liceu.

 

Dias despreocupados, que passavam lentos e límpidos, a bruma matinal e fresca, as tardes solarengas e os serões quase inexistentes…

 

Às vezes, no verão, um velhote vinha com material cinematográfico e projectava um filme num lençol sujo pendurado na parede da minúscula (e única) mercearia da aldeia: era uma festa e todos os moradores se juntavam no que servia de praça central.

 

E foi nesta aldeia que uma outra família alugou uma casa mesmo ao lado da casinha do tio Manel.

Cinco filhos; e o mais velho apareceu como um anjo de luz!

… Uma estátua grega. Na altura, ela não sabia nada das estátuas gregas, mas algo lhe dizia que aquela aparição tinha muito a ver com arte! E como tinha, sem o saber, uma alma de artista, não conseguia tirar os olhos daquela obra…

 

E foi assim que o interesse nas curtas visitas à aldeia cresceu a olhos vistos.

E foi assim que se deslumbraram!

Porque ela também era uma estátua.

 

Aos dezasseis anos,  o primeiro amor é uma fonte de descobertas sem fim!

E havia muito a descobrir.

 

Os passeios à Peninha tinham agora outro encanto, a apanha das amoras era uma delícia triplicada e os medronhos muito mais fáceis de recuperar com os rapazes a subirem às árvores mais altas e a atirarem-nos para as saias que as meninas levantavam para os receber!

E os risos eram mais alegres e mais ruidosos; e voltavam para casa um pouco ébrios de medronhos maduros, de ar puro e de uma sensação extraordinária de liberdade.

Adolescentes felizes…

 

Passava o verão, voltavam as aulas, mas agora havia encontros na cidade. Os primeiros encontros, meio clandestinos ao princípio, que se tornaram tão habituais que deixaram de o ser.

E com o regresso da primavera,  lá iam todos para a aldeia e recomeçavam as caminhadas, os piqueniques na serra preparados pela mãe dos cinco e pela tia, e as descidas terrivelmente perigosas à praia da Ursa - desconhecida na altura - por carreiros de cabras que seguiam a encosta com o precipício à direita, os olhos postos no chão para não resvalar …

 

Na vila, o café onde as famílias se encontravam, as festas populares, a feira no adro, tudo era pretexto para andar juntos e, como quem não quer a coisa, para namorar.

 

Com o passar dos anos e os cursos acabados, chegou o tempo de trabalhar

e agora era à porta do escritório que ele a vinha buscar.  

 

Iam ao cinema, ao café, nos fins-de-semana de verão encontravam-se na praia ou na piscina e agora, quando a levava a casa, entrava e ficava por ali um momento, conversava com a avó, viam qualquer coisa na televisão e depois voltava para casa.

 

Os encontros eram quase diários e era implícito que tinham o futuro “marcado”: iriam certamente casar!

 

E foi então que, não se lembra por que razão, um navio partiu do cais de Alcântara e levou o seu primeiro amor para África…

 

E quando voltou, o “francês” já a tinha levado consigo.

***

E agora, estava ali, de volta à pequena aldeia onde passara tantas pequenas aventuras que, na altura, pareciam gigantescas!

Já não havia a família de 5 filhos e a “estátua” grega já tinha perdido o brilho há muitas décadas.

 

Mas permanecia o sítio: mesmo se as belas silvas ao longo do caminho onde apanhava amoras tinham desaparecido e se os medronheiros tinham crescido e estavam agora fora do alcance, passeando entre os penedos sabia que o actual pequeno supermercado era na altura uma tasquinha muito pobre e pouco asseada, que naquela particular pedra se tinha sentado a ler, que por aquele atalho descera até à Ursa – e lembrava os arrepios de medo …

*** 

Tantas décadas tinham passado e era como se tivesse sido ontem.

 

Era uma viagem no tempo que tinha vindo fazer; não sabe porquê, não entende aquela  vontade repentina de vir passar dois meses na aldeia dos seus quinze anos e enquanto o pensamento corre como a brisa sem encontrar obstáculos, vêm-lhe à mente mil razões e nenhuma faz sentido.

 

A única coisa que faz sentido é a paz de que usufrui ali, como se estivesse  num lugar sagrado…

M.F. 10.7.21

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