O
ESCRITOR
(Recordações de uma Vida)
O meu nome é Afonso, fui filho único. A herança que minha
mãe me deixou foi a dos Valores Humanos, como o amor, a amizade, a honestidade,
a honradez, ajuda ao próximo, e muito mais, além da educação de rigor, que me
foi dada.
Fiquei também com duas casas. A primeira, onde nasci e sempre
habitei na cidade; a segunda é a casa de praia, a qual sempre foi chamada de “Cabana”.
Depois de completar o ensino
secundário, entrei para a Universidade e sai de lá formado em Filosofia. Ainda exerci
o ensino na própria Universidade, durante
alguns anos. Agora, que rondo os cinquenta
anos, um dia, talvez porque já estava cansado da vida citadina, lembrei-me de
fechar à chave a casa da cidade, onde nasci, meti-me no carro com uma mochila e
duas malas de viagem, e um precioso achado, de que nunca tivera conhecimento e
que era o Diário, que pertenceu a minha mãe. Descobri-o por acaso, quando dava
a última volta à casa antes de a fechar. E parti!
Respirei fundo e uma lágrima caiu-me pela face naquele lugar, onde fora sempre muito feliz. Não havia mais habitações no areal, a não ser a 1 km de distância a chamada Tasca Velha, e sua habitação, cujos donos eram o Sr. Juca e a esposa. Eu já os conhecia desde pequeno, porque íamos muitas vezes almoçar
e jantar lá ou de onde então trazíamos para casa o comer já feito. Quando andava na Universidade, o Sr. Juca chamava-me “o Escritor”, por andar sempre agarrado aos papéis e à caneta.O tempo foi fluindo. A cada dia que
passava, melhor me sentia: era um lugar de silêncio e bem- estar. De vez em
quando ia escrevendo as memórias, que hoje tenho daqueles tempos passados,
desde a infância até à adolescência. Nessa altura, a minha mãe era nova e
acompanhava-me em tudo, até nas pequenas diabruras e aventuras, que eu inventava,
como nos banhos de mar, onde não faltavam as grandes gargalhadas de um e de
outro. Com o balde de praia, fazíamos castelos na areia, mas estes duravam
pouco: se a onda fosse maior e passasse a barreira da areia molhada, levava
tudo à frente.
Eu tenho um conflito
interior, por nunca ouvi falar do meu pai...
Para mim era muito
estranho, mas não queria fazer perguntas sobre o assunto. Os avós já tinham falecido,
a mãe agora mais velha, tinha um problema de saúde, mas para mim era um
mistério, que gostaria de desvendar. Infelizmente, não foi possível fazê-lo, porque
o ano antes de ter tomado a minha decisão foi muito doloroso para mim: fechar à
chave a casa da cidade, onde a minha mãe e eu tínhamos nascido e onde ela
acabara por falecer.
Estava nestes pensamentos e, de repente, lembrei-me do
Diário da minha mãe. Naquela hora, eu iria profanar uma coisa, que ela sempre tivera
o cuidado de guardar. Eram os segredos escritos pela sua própria mão, que agora
seriam desvendados pela primeira vez, por alguém: eu, o seu próprio filho.
Corri para o meu quarto, abri a mochila, tirei de lá o Diário
e não fui capaz de o abrir. Guardei-o dentro duma gaveta e fechei-a à chave: não
era ainda o momento exacto.
O sol estava alto e batia-me na cara. Acabei por “passar
pelas brasas”. Daí a um bocado, ouvi vozes: achei estranho, levantei-me,
assustado. Diante de mim, estavam um
casal relativamente novo e mais dois filhos (uma menina e um menino). Pediram desculpa
pelo incómodo, mas queriam saber informações sobre a venda da Tasca Velha, porque
tinham sido informados de que os velhotes tinham ido para casa de uns parentes.
Disse-lhes que eu era o único habitante daquela pequena zona e não estava a par
do assunto. Aconselhei-os a irem à Vila e perguntarem aos comerciantes se
sabiam alguma coisa.
Agradeceram e partiram. Passou um mês e voltaram a bater à
porta, mas agora já com um ar de felicidade estampado no rosto.
- Finalmente, o nosso sonho tornou-se realidade! - disse o
casal.
Passados dois meses, fui tomar o meu primeiro pequeno - almoço
à Tasca Nova. O estabelecimento era um espaço muito agradável, gostava de ir
até lá. Eu continuei novamente a ter convívio, onde comer e passar um pouco do meu
tempo, como era hábito. Dei os parabéns aos donos pelo novo espaço, que tinham
criado. Eram pessoas muito sociáveis e educadas, bem como os seus filhos: uma
menina de 5 anos e um rapaz de 7 anos.
A minha presença na Tasca
Nova era bem vinda. Os donos tinham sempre um miminho para mim. Eram pessoas
com quem se podia falar. As crianças tinham a alegria daquela casa estampada
nos seus rostos. A minha pessoa estava no centro da amizade e simpatia daquela
família. Eu conseguia, por vezes, com a minha paciência, mestria e tolerância,
ultrapassar as maroteiras dos miúdos.
Pelas cinco horas, lá
ia para a caminhada do final da tarde, como a minha mãe fazia comigo todos os
dias. Realmente, ela tinha razão quando me dizia` “que fazia bem à saúde”.
Alguns dias
depois a temperatura subiu e, à noite, ainda se sentia o bafo desse calor.
Chegava a casa por volta das sete horas e, antes de ir jantar, tinha sempre o privilégio de ver o pôr-do-sol. À
noite comia pouco e deitava-me tarde, porque quer as insónias, quer a escrita
não têm hora marcada. Além disso não conseguia adormecer logo.
Abri a janela e, no parapeito, coloquei um candeeiro, que
fora da minha mãe. Mesmo com a luz fraca, o mar via-se. Até que o sono
apareceu. Estava a fechar a janela quando, de repente, me passou pelos olhos
uma diáfana figura de mulher, creio eu, que olhou para a minha janela, sorriu e
desapareceu da minha visão.
Pensei: estou tão cansado, que já vejo coisas onde elas não
existem. Dirigi-me ao quarto e só tive tempo de apagar a luz e meter-me dentro
da cama. Adormeci serenamente e acordei mais tarde que o habitual. Ao ver as
horas, comecei a
preparar-me para ir tomar o pequeno - almoço. No caminho, continuei a pensar no que tinha
sucedido na noite anterior.
Hoje, vou abrir a porta e sentar-me numa cadeira a olhar o mar,
meu companheiro de sempre…As horas foram passando e, de repente, vislumbro o
mesmo vulto, que passava mesmo perto de mim. Fiquei gelado! O que me iria
acontecer? Foi no
momento seguinte, que eu notei que aqueles olhos grandes eram, realmente, da
minha mãe. Ela do lugar onde estava, continuava a zelar por mim.
Levantei-me! Corri… já se tinha esfumado!
Por fim chegou o
mês de Outubro, tempo em que as marés mudam. Numa das minhas noites de insónia,
abri a janela e fiquei aterrorizado com o que vi. Uma tempestade como nunca
esperei. Saí de casa e fiquei no areal. Sem dar por nada, sou levado por uma
daquelas ondas. Ainda tentei regressar a terra, mas as ondas não eram as mesmas
onde eu nadava. Já muito ao longe, consegui voltar-me para terra: só tive tempo
de ver que já não existia nada no local onde vivia. Só me recordo de chorar… Naquele
sítio as ondas enrolavam-se. Ainda dei conta de perder os sentidos e… pronto,
era o meu fim.
Na manhã
seguinte, o Sr. Abel, dono da Tasca Nova, deu por falta do seu amigo Escritor.
Logo que lhe foi possível, foi a correr à Cabana para saber dele. Quando chegou
ficou estático: só via à sua volta água do mar e destroços pequenos, o resto
não existia. Começou a andar de um lado para o outro sem perceber o que teria
acontecido… Ao ver aquele espectáculo perante os seus olhos, apercebeu-se que o
amigo tinha sido vítima da Tempestade da noite anterior. Após andar ali tanto
tempo, a única coisa que viu junto à falésia
foi uma gaveta grande e pesada, fechada à chave, que o mar fez o favor de
encostar àquele paredão altíssimo.
Quando o Sr,
Abel regressou à Tasca Nova, chorava muito, não conseguia falar. Passados uns segundos, abraçou-os a todos, mulher e
filhos, e com o rosto marcado pelo desgosto e ao mesmo tempo pela alegria, disse:
-Ficai sabendo que
perdemos um amigo, um homem educado, que estava sempre disposto a ajudar, a
partilhar, a sorrir, a brincar, mas eu fiquei mais feliz porque lhe vou fazer
uma homenagem de saudade muito sentida e justa! Digo-vos isto uma só vez:
SALVEI A OBRA DO
ESCRITOR!
Azeitão-
30-05-2020
Carmo Bairrada
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