sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Inéditos, por Carmo Bairrada

 



O ESCRITOR 

(Recordações de uma Vida)

O meu nome é Afonso, fui filho único. A herança que minha mãe me deixou foi a dos Valores Humanos, como o amor, a amizade, a honestidade, a honradez, ajuda ao próximo, e muito mais, além da educação de rigor, que me foi dada.

Fiquei também com duas casas. A primeira, onde nasci e sempre habitei na cidade; a segunda é a casa de praia, a qual sempre foi chamada de “Cabana”.

 

Depois de completar o ensino secundário, entrei para a Universidade e sai de lá formado em Filosofia. Ainda exerci o ensino na própria Universidade, durante

alguns anos. Agora, que rondo os cinquenta anos, um dia, talvez porque já estava cansado da vida citadina, lembrei-me de fechar à chave a casa da cidade, onde nasci, meti-me no carro com uma mochila e duas malas de viagem, e um precioso achado, de que nunca tivera conhecimento e que era o Diário, que pertenceu a minha mãe. Descobri-o por acaso, quando dava a última volta à casa antes de a fechar. E parti!

 Ao longo do trajecto, ponderei bem naquele meu acto repentino e rumei até à praia onde se situava a “Cabana”.

Respirei fundo e uma lágrima caiu-me pela face naquele lugar, onde fora sempre muito feliz. Não havia mais habitações no areal, a não ser a 1 km de distância a chamada Tasca Velha, e sua habitação, cujos donos eram o Sr. Juca e a esposa. Eu já os conhecia desde pequeno, porque íamos muitas vezes almoçar

e jantar lá ou de onde então trazíamos para casa o comer já feito. Quando andava na Universidade, o Sr. Juca chamava-me “o Escritor”, por andar sempre agarrado aos papéis e à caneta.

 

O tempo foi fluindo. A cada dia que passava, melhor me sentia: era um lugar de silêncio e bem- estar. De vez em quando ia escrevendo as memórias, que hoje tenho daqueles tempos passados, desde a infância até à adolescência. Nessa altura, a minha mãe era nova e acompanhava-me em tudo, até nas pequenas diabruras e aventuras, que eu inventava, como nos banhos de mar, onde não faltavam as grandes gargalhadas de um e de outro. Com o balde de praia, fazíamos castelos na areia, mas estes duravam pouco: se a onda fosse maior e passasse a barreira da areia molhada, levava tudo à frente.

 

Eu tenho um conflito interior, por nunca ouvi falar do meu pai...

 

Para mim era muito estranho, mas não queria fazer perguntas sobre o assunto. Os avós já tinham falecido, a mãe agora mais velha, tinha um problema de saúde, mas para mim era um mistério, que gostaria de desvendar. Infelizmente, não foi possível fazê-lo, porque o ano antes de ter tomado a minha decisão foi muito doloroso para mim: fechar à chave a casa da cidade, onde a minha mãe e eu tínhamos nascido e onde ela acabara por falecer.

 

Estava nestes pensamentos e, de repente, lembrei-me do Diário da minha mãe. Naquela hora, eu iria profanar uma coisa, que ela sempre tivera o cuidado de guardar. Eram os segredos escritos pela sua própria mão, que agora seriam desvendados pela primeira vez, por alguém: eu, o seu próprio filho.

 

Corri para o meu quarto, abri a mochila, tirei de lá o Diário e não fui capaz de o abrir. Guardei-o dentro duma gaveta e fechei-a à chave: não era ainda o momento exacto.

O sol estava alto e batia-me na cara. Acabei por “passar pelas brasas”. Daí a um bocado, ouvi vozes: achei estranho, levantei-me, assustado. Diante de mim,  estavam um casal relativamente novo e mais dois filhos (uma menina e um menino). Pediram desculpa pelo incómodo, mas queriam saber informações sobre a venda da Tasca Velha, porque tinham sido informados de que os velhotes tinham ido para casa de uns parentes. Disse-lhes que eu era o único habitante daquela pequena zona e não estava a par do assunto. Aconselhei-os a irem à Vila e perguntarem aos comerciantes se sabiam alguma coisa.

Agradeceram e partiram. Passou um mês e voltaram a bater à porta, mas agora já com um ar de felicidade estampado no rosto.

- Finalmente, o nosso sonho tornou-se realidade! - disse o casal.

 

Passados dois meses, fui tomar o meu primeiro pequeno - almoço à Tasca Nova. O estabelecimento era um espaço muito agradável, gostava de ir até lá. Eu continuei novamente a ter convívio, onde comer e passar um pouco do meu tempo, como era hábito. Dei os parabéns aos donos pelo novo espaço, que tinham criado. Eram pessoas muito sociáveis e educadas, bem como os seus filhos: uma menina de 5 anos e um rapaz de 7 anos.

 

A minha presença na Tasca Nova era bem vinda. Os donos tinham sempre um miminho para mim. Eram pessoas com quem se podia falar. As crianças tinham a alegria daquela casa estampada nos seus rostos. A minha pessoa estava no centro da amizade e simpatia daquela família. Eu conseguia, por vezes, com a minha paciência, mestria e tolerância, ultrapassar as maroteiras dos miúdos.

 

Pelas cinco horas, lá ia para a caminhada do final da tarde, como a minha mãe fazia comigo todos os dias. Realmente, ela tinha razão quando me dizia` “que fazia bem à saúde”.

 

Alguns dias depois a temperatura subiu e, à noite, ainda se sentia o bafo desse calor. Chegava a casa por volta das sete horas e, antes de ir jantar, tinha sempre o privilégio de ver o pôr-do-sol. À noite comia pouco e deitava-me tarde, porque quer as insónias, quer a escrita não têm hora marcada. Além disso não conseguia adormecer logo.

Abri a janela e, no parapeito, coloquei um candeeiro, que fora da minha mãe. Mesmo com a luz fraca, o mar via-se. Até que o sono apareceu. Estava a fechar a janela quando, de repente, me passou pelos olhos uma diáfana figura de mulher, creio eu, que olhou para a minha janela, sorriu e desapareceu da minha visão.

 

Pensei: estou tão cansado, que já vejo coisas onde elas não existem. Dirigi-me ao quarto e só tive tempo de apagar a luz e meter-me dentro da cama. Adormeci serenamente e acordei mais tarde que o habitual. Ao ver as horas, comecei a preparar-me para ir tomar o pequeno - almoço. No caminho, continuei a pensar no que tinha sucedido na noite anterior.

 

 

Hoje, vou abrir a porta e sentar-me numa cadeira a olhar o mar, meu companheiro de sempre…As horas foram passando e, de repente, vislumbro o mesmo vulto, que passava mesmo perto de mim. Fiquei gelado! O que me iria acontecer? Foi no momento seguinte, que eu notei que aqueles olhos grandes eram, realmente, da minha mãe. Ela do lugar onde estava, continuava a zelar por mim.          

Levantei-me! Corri… já se tinha esfumado!

 

Por fim chegou o mês de Outubro, tempo em que as marés mudam. Numa das minhas noites de insónia, abri a janela e fiquei aterrorizado com o que vi. Uma tempestade como nunca esperei. Saí de casa e fiquei no areal. Sem dar por nada, sou levado por uma daquelas ondas. Ainda tentei regressar a terra, mas as ondas não eram as mesmas onde eu nadava. Já muito ao longe, consegui voltar-me para terra: só tive tempo de ver que já não existia nada no local onde vivia. Só me recordo de chorar… Naquele sítio as ondas enrolavam-se. Ainda dei conta de perder os sentidos e… pronto, era o meu fim.

 

Na manhã seguinte, o Sr. Abel, dono da Tasca Nova, deu por falta do seu amigo Escritor. Logo que lhe foi possível, foi a correr à Cabana para saber dele. Quando chegou ficou estático: só via à sua volta água do mar e destroços pequenos, o resto não existia. Começou a andar de um lado para o outro sem perceber o que teria acontecido… Ao ver aquele espectáculo perante os seus olhos, apercebeu-se que o amigo tinha sido vítima da Tempestade da noite anterior. Após andar ali tanto tempo, a única coisa que viu junto à  falésia foi uma gaveta grande e pesada, fechada à chave, que o mar fez o favor de encostar àquele paredão altíssimo.

Quando o Sr, Abel regressou à Tasca Nova, chorava muito, não conseguia falar. Passados  uns segundos, abraçou-os a todos, mulher e filhos, e com o rosto marcado pelo desgosto e ao mesmo tempo pela alegria, disse:

 

-Ficai sabendo que perdemos um amigo, um homem educado, que estava sempre disposto a ajudar, a partilhar, a sorrir, a brincar, mas eu fiquei mais feliz porque lhe vou fazer uma homenagem de saudade muito sentida e justa! Digo-vos isto uma só vez:

 

SALVEI A OBRA DO ESCRITOR!

 

Azeitão- 30-05-2020

Carmo Bairrada

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