quarta-feira, 20 de março de 2013

"HERÓIS DOS TEMPOS", conto de Rogério Miranda



Heróis dos tempos
No tempo das brumas, em que tudo era e não era, num vale perdido no meio das serranias, vivia um casal  humilde e trabalhador, que se esforçava arduamente para conseguir sobreviver.

As tempestades, as lamas e os frios do inverno impediam-nos de trabalhar a pequena porção de terra que tinham conseguido desbravar e,  nos meses mais agrestes, durante todo o dia, apenas mastigavam alguns grãos de cereal, dos que amealhavam ciosamente no final da colheita.

Numa noite de inverno, em que o vento gelado soprava furioso e descontrolado, ouviram bater de leve na porta do casebre construído de pedras irregulares. Assustados, olharam-se com ar interrogativo, olharam para a porta, até que voltaram a ouvir de novo umas pancadas, agora mais vigorosas.

Ele levantou-se e, por precaução, empunhou o cajado que guardava atrás da porta.

-          Quem está aí? - perguntou.

-          Ajudem-me, por favor - respondeu uma voz sumida, abafada pelo uivar da ventania.

O homem abriu a porta e num ápice entrou uma mulher de idade avançada, que aparentava um tal estado de fraqueza, que dir-se-ia impossível ter conseguido atravessar sozinha aquelas serranias em noite de vendaval.

-          Boa noite - saudou ela. E mesmo sem ter sido convidada, imediatamente se chegou ao fogo, de costas para quem a recebia.

-          Boa noite - responderam os dois em coro.

-          Vossemecê anda perdida? - perguntou ele desconfiado.

A velha nem respondeu. Ao fim de longos segundos, encarou-os e declarou:

(início de Ana Machete, continuado por Rogério Miranda, que se segue)

Heróis dos Tempos


- Venho de Jueus, lugar escondido atrás dos penedos, não sei se pela aflição, se pela ventania, fui desviada do meu destino, pois eu queria ir para a Bezarreira, que é o povoado mais próximo, onde pediria auxílio…Se foi Deus que para aqui me trouxe, eu lhe agradeço, pois já vi, que vossemecês são duas boas almas…
Respirou fundo e continuou:
-Estava em casa ao cair da tarde, quando uma desgraça me bateu à porta; meu filho, meu amparo, deu uma queda, bateu com a cabeça nas pedras da escada e perdeu os sentidos… Mal pude arrastá-lo para dentro, deitá-lo no sobrado, pondo-lhe áuga fria nas fontes, para que voltasse a si. Assim aconteceu; mas além da cabeça estar pisada, tem também um pé, que não pode com dores. E não ter partido a espinha, já foi graça do Senhor.
E prosseguiu:
-antes de partir em busca de socorro, dei-lhe um caldo de áuga da banha, em caçoilo de pez, para o aquecer até que eu voltasse. A lareira só tem borralho, a lenha é pouca, eis a minha aflição!
O casal entre olhou-se, sem saber o que fazer…Mas num ápice, o homem disse:

-Mulher, ficas aqui, que eu vou com esta “mãe coragem”, socorrer-lhe o seu amparo. Mas antes de partirmos, aquece um pouco de áuga, mete-lhe dentro dois grãos de milho, para que esta pobre mulher, aqueça as goelas, que tanto vento apanharam nestas andanças brumosas…

Cobrindo-se com uma capucha e pondo outra na velha, apanhou o cajado, calçou os tamancos, acendeu uma lanterna e partiram embrenhando-se na noite de breu, ventosa e gélida.

Esta mulher, vivia num lugar ermo, numa casa de granito forte mas fria, juntamente com o filho, trabalhando ambos, nas pequenas leiras, que pouco produziam, dada a qualidade da terra que era fraca, (arenosa, e pouco estrumada, pois para adubo, não havia posses).

Contudo, com os braços fortes do filho, (que além do trabalho agrícola, trabalhava como resineiro…), a mulher conseguia ter umas “pitas” e um “bacorito”, que matava todos os anos, proporcionando-lhe alguma carne e gordura, para enfrentarem as inclemências do Inverno.

Estes parcos recursos de autoconsumo, só possíveis porque se tratavam de animais passeados, andavam pela natureza, esgravatando, comendo bicharada e folhagem das moitas.

Tinham também uma pequena horta, de couves-galegas, para o caldo. Este caldo, era feito com um naco de toucinho, para dar “sustança”.

Às vezes, quando as couves já só tinham o “olho”, a mulher recorria às urtigas, nascidas espontaneamente nas bordas da poça, (reservatório natural de água da nascente, que existia junto à horta), como forma supletiva de completar o caldo.

E assim decorriam os dias em Jueus, na casa da mulher que se chamava Prazeres…

Quando esta chegou a casa, acompanhada pelo seu “socorrista”, deparou com o filho gemendo de dores e gelado de frio (em quase hipotermia), “foi um Deus nos acuda!”

Deu-lhe um caldo quente e aqueceu roupas para lhe elevar a temperatura do corpo.

Quando o Jacinto melhorou (pois era este o seu nome), o Custódio” socorrista”, observou-lhe os ferimentos e detectou o edema do pé e da perna; de imediato, aplicou-lhe parches de água bem gelada e fez-lhe uma atadura, para suporte do pé.
A cabeça estava um pouco roxa, mas graças ao Altíssimo, nada de gravidade…
Mesmo assim, aplicou-lhe parches frios, por forma a reduzir os hematomas e de seguida, deitaram-no na cama, com a perna e o pé elevados, a fim de diminuir os edemas.

A senhora Prazeres de tão reconhecida, presenteou o Sr. Custódio, com uma franga, um pedaço de toucinho, uma malga de banha e meia-dúzia de ovos. Deu-lhe ainda, meia-dúzia de pés de couve, que ela tinha protegidas para o plantio da Primavera.

O Sr. Custódio saiu feliz pela manhã, (o tempo tinha amainado), cantando pelo caminho, por ter praticado o bem a outrem, mesmo sem os conhecer…

À despedida, a srª. Prazeres, genuflectiu-se e persignou-se, agradecendo ao Senhor, o milagre que lhe havia proporcionado…

A solidariedade entre os humildes, norteia-se por padrões elevados de pureza ética!

Rogério Miranda, Fevereiro 2012

Sem comentários: