Heróis
dos tempos
No
tempo das brumas, em que tudo era e não era, num vale perdido no meio das
serranias, vivia um casal humilde e
trabalhador, que se esforçava arduamente para conseguir sobreviver.
As
tempestades, as lamas e os frios do inverno impediam-nos de trabalhar a pequena
porção de terra que tinham conseguido desbravar e, nos meses mais agrestes, durante todo o dia,
apenas mastigavam alguns grãos de cereal, dos que amealhavam ciosamente no final
da colheita.
Numa
noite de inverno, em que o vento gelado soprava furioso e descontrolado,
ouviram bater de leve na porta do casebre construído de pedras irregulares.
Assustados, olharam-se com ar interrogativo, olharam para a porta, até que
voltaram a ouvir de novo umas pancadas, agora mais vigorosas.
Ele
levantou-se e, por precaução, empunhou o cajado que guardava atrás da porta.
-
Quem está aí? - perguntou.
-
Ajudem-me, por favor - respondeu uma voz
sumida, abafada pelo uivar da ventania.
O
homem abriu a porta e num ápice entrou uma mulher de idade avançada, que
aparentava um tal estado de fraqueza, que dir-se-ia impossível ter conseguido
atravessar sozinha aquelas serranias em noite de vendaval.
-
Boa noite - saudou ela. E mesmo sem ter
sido convidada, imediatamente se chegou ao fogo, de costas para quem a recebia.
-
Boa noite - responderam os dois em coro.
-
Vossemecê anda perdida? - perguntou ele
desconfiado.
A
velha nem respondeu. Ao fim de longos segundos, encarou-os e declarou:
(início de Ana Machete, continuado por Rogério
Miranda, que se segue)
Heróis
dos Tempos
- Venho de Jueus, lugar
escondido atrás dos penedos, não sei se pela aflição, se pela ventania, fui
desviada do meu destino, pois eu queria ir para a Bezarreira, que é o povoado
mais próximo, onde pediria auxílio…Se foi Deus que para aqui me trouxe, eu lhe
agradeço, pois já vi, que vossemecês são duas boas almas…
Respirou fundo e
continuou:
-Estava em casa ao cair
da tarde, quando uma desgraça me bateu à porta; meu filho, meu amparo, deu uma
queda, bateu com a cabeça nas pedras da escada e perdeu os sentidos… Mal pude
arrastá-lo para dentro, deitá-lo no sobrado, pondo-lhe áuga fria nas fontes,
para que voltasse a si. Assim aconteceu; mas além da cabeça estar pisada, tem
também um pé, que não pode com dores. E não ter partido a espinha, já foi graça
do Senhor.
E prosseguiu:
-antes de partir em
busca de socorro, dei-lhe um caldo de áuga da banha, em caçoilo de pez, para o
aquecer até que eu voltasse. A lareira só tem borralho, a lenha é pouca, eis a
minha aflição!
O casal entre olhou-se,
sem saber o que fazer…Mas num ápice, o homem disse:
-Mulher, ficas aqui,
que eu vou com esta “mãe coragem”, socorrer-lhe o seu amparo. Mas antes de partirmos,
aquece um pouco de áuga, mete-lhe dentro dois grãos de milho, para que esta
pobre mulher, aqueça as goelas, que tanto vento apanharam nestas andanças
brumosas…
Cobrindo-se com uma
capucha e pondo outra na velha, apanhou o cajado, calçou os tamancos, acendeu
uma lanterna e partiram embrenhando-se na noite de breu, ventosa e gélida.
Esta mulher, vivia num
lugar ermo, numa casa de granito forte mas fria, juntamente com o filho,
trabalhando ambos, nas pequenas leiras, que pouco produziam, dada a qualidade da
terra que era fraca, (arenosa, e pouco estrumada, pois para adubo, não havia
posses).
Contudo, com os braços
fortes do filho, (que além do trabalho agrícola, trabalhava como resineiro…), a
mulher conseguia ter umas “pitas” e um “bacorito”, que matava todos os anos,
proporcionando-lhe alguma carne e gordura, para enfrentarem as inclemências do
Inverno.
Estes parcos recursos
de autoconsumo, só possíveis porque se tratavam de animais passeados, andavam
pela natureza, esgravatando, comendo bicharada e folhagem das moitas.
Tinham também uma
pequena horta, de couves-galegas, para o caldo. Este caldo, era feito com um
naco de toucinho, para dar “sustança”.
Às vezes, quando as
couves já só tinham o “olho”, a mulher recorria às urtigas, nascidas
espontaneamente nas bordas da poça, (reservatório natural de água da nascente,
que existia junto à horta), como forma supletiva de completar o caldo.
E assim decorriam os
dias em Jueus, na casa da mulher que se chamava Prazeres…
Quando esta chegou a
casa, acompanhada pelo seu “socorrista”, deparou com o filho gemendo de dores e
gelado de frio (em quase hipotermia), “foi um Deus nos acuda!”
Deu-lhe um caldo quente
e aqueceu roupas para lhe elevar a temperatura do corpo.
Quando o Jacinto
melhorou (pois era este o seu nome), o Custódio” socorrista”, observou-lhe os
ferimentos e detectou o edema do pé e da perna; de imediato, aplicou-lhe
parches de água bem gelada e fez-lhe uma atadura, para suporte do pé.
A cabeça estava um
pouco roxa, mas graças ao Altíssimo, nada de gravidade…
Mesmo assim,
aplicou-lhe parches frios, por forma a reduzir os hematomas e de seguida,
deitaram-no na cama, com a perna e o pé elevados, a fim de diminuir os edemas.
A senhora Prazeres de
tão reconhecida, presenteou o Sr. Custódio, com uma franga, um pedaço de
toucinho, uma malga de banha e meia-dúzia de ovos. Deu-lhe ainda, meia-dúzia de
pés de couve, que ela tinha protegidas para o plantio da Primavera.
O Sr. Custódio saiu
feliz pela manhã, (o tempo tinha amainado), cantando pelo caminho, por ter
praticado o bem a outrem, mesmo sem os conhecer…
À despedida, a srª.
Prazeres, genuflectiu-se e persignou-se, agradecendo ao Senhor, o milagre que
lhe havia proporcionado…
A solidariedade entre
os humildes, norteia-se por padrões elevados de pureza ética!
Rogério Miranda, Fevereiro 2012
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