- Também há uma "onzena de palavras"? A que corresponderá o "bolsão" do Onzeneiro no discurso do Demagogo?... (poema de Sophia, TEXTO A)
- Crie uma cena adaptada ao "Auto da Barca do Inferno" inserindo uma personagem sugerida pelo "TU" a que se refere Eugénio de Andrade ("Que contas darás tu dessas vogais...?"): argumentação e sentença (TEXTO B)
- Reflita sobre o valor do "SILÊNCIO"... no Auto e no conto com o mesmo nome de Sophia (TEXTO C)
TEXTO A:
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra.
Sophia de Mello Breyner A.
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra.
Sophia de Mello Breyner A.
TEXTO B:
"Que fizeste das palavras?"
Que fizeste das palavras?Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?
E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?
Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?
Eugénio de Andrade
TEXTO C:
O Silêncio
Era complicado. Primeiro deitou os restos de
comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água
corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou-os numa bacia com sabão e água
quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e
deitou-a no lava-loiças com duas medidas de sonasol e de novo lavou pratos,
colheres, garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os talheres por água limpa
e pô-los a escorrer na banca de pedra.
As suas mãos tinham ficado ásperas, estava
cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si
uma grande limpeza como se em vez de, estar a lavar a loiça estivesse a lavar a
sua alma. A luz sem abat-jour da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá
fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava brandamente.
O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os
copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.
Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.
Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.
E Joana atravessou devagar a sua casa.
Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e
fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na
claridade.
Um doce silêncio pairava como uma sede
estendida.
O silêncio desenhava as paredes, cobria as
mesas, emoldurava os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as
linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria
realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.
As coisas conhecidas — o muro, a porta, o
espelho — mostravam uma por uma a sua beleza e a sua serenidade. E nas janelas
abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.
Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o
vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu
lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a
porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.
As coisas pareciam atentas. E a mulher que
lavara a loiça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o
pode captar?
O silêncio agora era maior. Era como uma flor
que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.
E em roda deste silêncio os astros da noite
exterior giravam lentamente e o seu movimento imperceptível tomava em si a
ordem e o silêncio da casa.
Com as mãos tocando a parede branca Joana
respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação nocturna. Da
ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade: Ela respirava
essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.
A paz que a cercava era aberta e transparente.
A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia
mas reconhecia.
Atravessou a sala e debruçou-se na janela
aberta em frente do puro instante azul da noite.
As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E
pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre
uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao
equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo
inteiro.
E ela habitava essa unidade, estava presente e
viva na relação das coisas e a própria realidade atenta a abrigava em sua
imensa e aguda presença.
No ar, na cal, no vidro, tocava a sua
felicidade e essa felicidade era no seu centro unidade.
Debruçou-se na janela e apoiou os braços na
pedra fresca do parapeito.
Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No
rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas. Foi então
que se ouviu o grito.
Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que
atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.
Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um
pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram,
trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma
voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito
se ia desformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e
cego. Depois a voz enfraqueceu, baixou, tomou um ritmo de soluço, um tom de
lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero,
violência.
Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos
abriram uma grande fenda, uma ferida, E assim como a água começa a invadir o
interior enxuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela
fenda que os gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico
penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.
Joana afastou-se da janela que dava para o
jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa,
debruçou-se na janela que dava para a rua.
A mulher via-se mal, agarrada à parede, na
meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos
enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o
seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De
uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas
fechadas.
Era uma rua estreita, apertada entre edifícios
sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço, parado e
pegajoso.
Cães vadios farejavam o chão dos passeios e
rebuscavam os caixotes do lixo tentando agarrar sob as tampas os restos, as
cascas, o pescoço da galinha degolada.
O edifício enorme da prisão enchia todo o lado
esquerdo da rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A
essa parede estava encostada a mulher. As vezes erguia a cara e então via-se o
rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um
homem. Era tarde. As portas e as janelas estavam fechadas sobre gente
adormecida e na rua não passava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um
chiar de carros na viragem das esquinas.
O homem procurava arrastar a mulher e, quando
os gritos diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:
— Vamos embora.
Mas
ela não o ouvia. Gritava como se estivesse só no mundo, como se tivesse
ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura
solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite.
Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua
dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se
quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar
alguém, obrigar alguém, a responder. Gritava contra o silêncio.
Às
vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para trás como quem espera
ouvir uma resposta.
Então,
de novo, o homem implorava:
—
Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.
Mas
ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se
quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um
ausente, acordar um adormecido, abalar uma consciência impassível e, alheada,
tocar o coração de um morto.
Através
das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo,
para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação da noite, para o fundo do
silêncio.
De
repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as mãos. Então o homem
cobriu-lhe os cabelos com o xaile, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em
roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e viraram a esquina.
Durante
algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de soluços e de passos que se
afastavam e diminuíam. Depois voltou o silêncio.
Um
silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.
Joana
voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da
mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo,
sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com
ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.
E,
tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como
estrangeira a sua casa.
In
Histórias da Terra e do Mar
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