quinta-feira, 14 de maio de 2015

Sophia de Mello Breyner: princesas


Para atravessar contigo o deserto do mundo 
Para enfrentarmos juntos o terror da morte 
Para ver a verdade para perder o medo 
Ao lado dos teus passos caminhei 

Por ti deixei meu reino meu segredo 
Minha rápida noite meu silêncio 
Minha pérola redonda e seu oriente 
Meu espelho minha vida minha imagem 
E abandonei os jardins do paraíso 

Cá fora à luz sem véu do dia duro 
Sem os espelhos vi que estava nua 
E ao descampado se chamava tempo 

Por isso com teus gestos me vestiste 
E aprendi a viver em pleno vento 
Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'


RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA

Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972

“Modesta Homenagem a Sofia de Mello Breyner”

Durante longos anos, as mulheres não tinham voz nem vontade próprias!Tinham deveres… Mas a maioria ignorava por completo se teria alguns direitos! Tinham o dever de dar filhos a esta Pátria, mascarada de “Princesa Perfeita” que, como escravos, por ela lutavam e davam a vida… Dever de respeitar, obedecer e submeter  à vontade do homem a quem se ligavam pelo casamento, que era mais uma prisão… e que ainda hoje existe, para algumas de nós! O amor não tinha grande representação neste “contrato,” salvo algumas poucas excepções (“E foram dias duros, à luz sem véu “)… Silenciosos eram os nossos queixumes (“Por ti deixei o meu reino!”)! A Pátria e a Religião lembravam em cada momento da vida que, ao deixar o lar paterno, o nosso “reino, “éramos agora propriedade, dum sistema que nos não reconhecia o mais elementar dos direitos: a Liberdade! Felizmente que, pela via da cultura, algumas adquiriram consciência e conseguiram “Atravessar o descampado do tempo” e reconhecer a nudez das nossas vidas! (“Sem os espelhos vi que estava nua e por isso com teus gestos me vesti”). Apenas gestos! Foi com essa realidade que nos habituámos a viver. Até que Abril chegou, pondo fim à guerra e entregando nos nossos braços cansados, o que restava dos filhos que fomos forçadas a dar-lhe. E então “Aprendi a viver em pleno vento”!... “Para ver a verdade e perder o medo”.
No poema de Sofia de Mello Breyner de 1962, nota-se a força duma grande Mulher e Poetisa, que com os seus Poemas nos ajudou a tomar consciência da nossa “ nudez cultural “!...


Elita Guerreiro*30/4/2015

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