segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Acordo Ortográfico

"Um cê a mais", Manuel Halpern

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador
retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia.
De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou
tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua
portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por
mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e
silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos
e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos
na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo,
fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não
falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem
as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para
o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos
espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao
segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras
arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram
hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto,
para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família.
Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles,
porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de
fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os
meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem
privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe,
flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas
palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já
não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei
que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.
Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça
perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto
abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual
nem atuante com um cê a atrapalhar.

(texto recebido por e-mail)

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