sexta-feira, 28 de julho de 2017

Para uma análise do conto "O Homem", Sophia de Mello Breyner


Para uma análise do conto “O Homem” de
Sophia de Mello Breyner, comparado com “O Operário em Construção” de Vinicius de Moraes

Novembro estava no fim, e naquela tarde com o céu cinzento carregado de nuvens, a cidade fervilhava de gente: andavam tão depressa, que não falavam, não se conheciam e continuavam sempre em frente, naquele ritmo, que nem davam conta do que se passava à sua volta…
Seguiam sempre em frente. Pareciam uns verdadeiros robots comandados à distância pelos seus donos, cujo bem-estar e riqueza eram adquiridos à conta do potencial dos braços de todos aqueles, que ainda não tinham consciência do seu verdadeiro valor .

Alguns, ou seria a maioria, demonstravam nos seus rostos o cansaço, o desânimo, e até um certo sofrimento. Todos sem excepção carregavam os seus próprios problemas. Talvez por desconhecerem que o seu trabalho deveria ser considerado um bem comum e não de uma minoria. Eram, realmente, o espelho daquele que é o “Operário em Construção”.

No meio dessa multidão, alienada, entre cabeças e ombros, destacava-se um homem com uma criança nos braços. Caminhava devagar junto ao frio muro, e ninguém dava conta dele, era como se não existisse.

Mas, por entre a confusão de cabeças e ombros, a narradora com muita dificuldade conseguiu ultrapassá-lo de raspão, levada por aquela vertigem de gente e só teve tempo de reparar nos lindos olhos azuis da criança, como se eles fossem uma madrugada de verão, ou uma rosa, ou o orvalho, ou uma belíssima imagem de inocência humana.

A narradora continuava a ser levada pela multidão. De repente, pensou ir em sentido oposto e tentar chegar àquela figura. Quando parou a uma certa distância, aguentando todos os embates daquela gente em movimento, conseguiu ver o homem extraordinariamente belo:

Teria 30 anos.
Rosto bem esculpido com sulcos profundos provocados pela miséria, abandono e, solidão.
O seu fato, que tendo perdido a cor tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome.
Era o retrato fiel da pobreza, e de um enorme sofrimento.

O homem, entretanto, voltou a erguer os olhos ao céu, com um jeito de quem já tinha chegado ao fim das suas forças e ao fim dos seus limites.
Todo ele transpirava sofrimento, resignação e espanto, dando a entender  que queria fazer uma pergunta e obter uma resposta. Mas o céu era um imenso deserto de nuvens pesadas…

Naquele instante, a narradora, como se tivesse tido um “revelação”, pensou: Eu conheço este homem, mas de onde?
Chamou a si todas as forças, e como se de um filme se tratasse, em segundos, passaram pela sua mente muitas imagens. Uma a uma, devagar, e inconfundíveis, apareceram então as palavras:

“Pai, Pai porque me abandonaste?”

Por último, a narradora compreendia agora, que para além de todas as durezas e traições dos homens deste mundo desumanizado, começava par aquele homem a sua última prova, “o suplício”: O Silêncio de Deus.

Já faltava pouco para a narradora alcançar o homem, quando o viu cair juntamente com a criança, Então, mesmo distante, reparou que da sua boca corria um rio de sangue, e o seu olhar continuava a ser de “infinita paciência.
A criança estava no meio do passeio com o seu vestido sujo de sangue, e com ele tapava a cara e chorava.

A narradora tentava chegar junto deles, mas já se tinha formado um grande e denso círculo de pessoas, que era impossível de romper. Queriam todos parar, ver o que tinha acontecido, ajudar…
Foi nesse preciso momento, que em cada uma daquelas pessoas  tinha entrado “a tomada de consciência de valores,” que até aí lhes era desconhecida. Assim, começou a revolução no interior de cada uma delas, como se fosse o despertar de todos os sentidos, que lhes tinham sido negados ao longo de anos.
Começaram a aprender a dizer “não” a tudo o que não fosse justo  e transparente.
Agora sim, exigiam ser tratados como seres humanos  e não como máquinas, queriam construir uma sociedade mais justa e humanizada para todos.

A narradora como não conseguia chegar à frente, só ouviu as lamentações, os apitos da polícia e o barulho da sirena da ambulância chegando. Depois quando o círculo se abriu, o homem e a criança tinham desaparecido.

Entretanto, a multidão começou a dispersar  e a narradora ficou só no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade.

Passaram muitos anos. O homem deve ter morrido.

Mas continua até aos nossos dias, a acompanhar-nos pelas ruas.
Que um dia foram de um qualquer “Operário em Construção”.

Azeitão, 08-05-2017

Carmo Bairrada
A TENTAÇÃO

Análise / comparação de textos

A vida de Jesus, como sabemos, tem inspirado gerações e gerações de artistas de todas as «disciplinas» da arte: da escultura à música, da pintura à poesia e à literatura …

Nesta última, são tantas as obras que se baseiam na história/lenda da vinda do Messias à terra, que é impossível lembrá-las todas.

Às vezes, a partir de uma parábola, outras de uma simples frase da Bíblia, ou ainda de alguma citação dos Evangelhos, são compostos versos, criados contos, tecidos romances...

Por exemplo,

A frase «Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares» deu azo a dezenas de contos, romances e ficções, frase-chave em duas das histórias que aqui  tentamos analisar :


- a poesia O Operário em Construção, de Vinicius de Morais
- o poema A Nau Catrineta de Almeida Garrett
- e o conto O Homem, de Sophia de Melo Breyner.             

É óbvio que nas duas primeiras obras, o tema é a “tentação” e a resistência à mesma. No conto de Sophia de Melo Breyner, o elo é menos evidente, mas algo sugere que existe um elo!

No Operário em Construção, Vinicius narra-nos como é que, a pouco e pouco, um simples operário – que claramente representa aqui toda a classe operária - adquire a consciência (com que certamente não nasceu!) da sua condição de homem subjugado, abusado, e aproveitado por pouco preço.

Quando os potentes – aqui representados pelo “patrão” - se dão conta do despertar dessa consciência, vão, de um certo modo, desempenhar o mesmo papel que o diabo no deserto: tentar demovê-lo da sua liberdade individual em prol de uma obediência cega ao “poder” – ao patronato.

Na Nau Catrineta, o diabo, ao fim de um diálogo com o capitão, é muito explícito, mostrando o seu jogo: só vem pelas almas, não quer mais nada !
Ambas as histórias terminam com a vitória do “bem sobre o mal” (outra coisa não era de esperar!) : no caso do operário, que recusa a oferta com um peremptório não, preferindo o seu livre arbítrio ao fraco poder que lhe é proposto, e no caso do Capitão que recusa vender a sua alma para salvar a vida e prefere afundar-se com a sua nau.

Nem mesmo a criança que leva ao colo como se esta lhe fosse desconhecida; o que nos leva a pensar que esta menina poderia aqui figurar a tentação : “levas-me onde eu quero e eu salvo-te a vida” …

A descrição deste homem que nos faz a autora, lembra-nos, quase antes que ela no-lo diga, a figura de Jesus Cristo, no seu desapego das coisas terrenas e levantando os olhos ao céu como que chamando pelo Pai.
Quando ele cai, poderia ser para se livrar do fardo que levava ao colo, o fardo da tentação…


E lembra-nos a imagem sofrida e sangrenta do “Ecce Homo” de Pôncio Pilatos… E esse poderia ser o elo!

Mercedes Ferrari



A Intemporalidade no Conto “O Homem” de
Sophia de Mello Breyner

A acção deste conto passa-se no movimentado centro da cidade, com os seus altos muros e negros. A multidão, ao fim de mais um dia de trabalho, torna-se frenética e alucinada: todos querem chegar depressa a qualquer lado.

A narradora está no meio desta barafunda de ombros e cabeças, que se deslocam vertiginosamente. Mas ela fala de um homem anónimo, solitário no meio de tal multidão, que leva nos braços uma criança tão bela quanto o próprio homem, cuja presença não é notada.

Acaba por ser ela a fixar-se no olhar do protagonista, apesar dos lindos olhos azuis da criança terem sido a primeira coisa, que a deslumbrou.

Mas, aquele homem, ela conhece-o, ou melhor reconhece-o (aquela posição da cabeça, o olhar, o ar de sofrimento).
Começaram então, nos recônditos da sua memória, a passar mil imagens até que, finalmente, o encontra associado às palavras de Cristo, na cruz:


“Pai, Pai porque me abandonaste?”

(Bíblia, Salmo 22, “Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?”)

São as palavras de alguém, que já está nos limites das suas forças, que já não espera qualquer auxílio humano e se sente abandonado pelo próprio Deus.
A narradora, quando faz esta ligação, volta para trás à procura do homem Cristo, opondo-se a toda aquela multidão, que circulava na cidade e lhe dificultava o caminhar.

Quando já está perto dele, o homem cai no chão juntamente com a criança, que levava nos braços e que ficou no passeio a chorar, ao mesmo tempo que tapava a cara com o seu vestido sujo de sangue, que saíra da boca do homem.

A narradora apressa-se, mas agora todas as pessoas que não tinham reparado nele, aglomeraram-se à sua volta num círculo tão fechado e intransponível, que ela, angustiada por não poder chegar perto para prestar auxílio, não consegue ultrapassar.

Ambos (a narradora e o homem) estavam completamente sós, incapazes de comunicar. Qualquer um deles estava em sofrimento: ela, por se sentir inútil e el,e por se sentir abandonado por todos.

Tanto o homem como a mulher (somos todos nós) que atingem os limites da natureza humana, continuam a estar sempre connosco…  por isso, cabe-nos a nós descobri-los e auxiliá-los.

Não existe melhor maneira de dar conta  desta Intemporalidade que com a própria frase do final do texto:

Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas, continua ao nosso lado, Pelas ruas.

Carmo Bairrada
Maio 2017


“ A CADA UM  A SUA CRUZ”

A beleza inocente daquela criança, impressionou a narradora! Poderia ter acontecido
numa qualquer rua de Lisboa, no tempo em que a cidade fervilhava de gente
apressada, que se acotovelava nos passeios. Empurrada pela multidão, a narradora
passou por aquele homem que levava ao colo uma criança que ela comparou” à beleza
duma madrugada de Verão ou a uma rosa orvalhada. ”Ao olhar para trás, mais uma vez
para contemplar a criança, reparou, surpreendida, no rosto do homem que a
transportava: era jovem, “devia ter uns trinta anos.” Pobremente vestido, no rosto com
barba de vários dias notavam-se marcas de sofrimento, abandono e solidão. “No
entanto, possuía uns belíssimos olhos claros, de luminosa doçura! Como quem pede
uma resposta para os seus sofrimentos, o homem levantou a cabeça para o céu. “Um
céu alto sem resposta cor de frio.” Como Jesus, que consciente da sua agonia, pediu
ajuda ao Pai: ” Pai afasta de mim este cálice, Marcos 14-34-36”. Para o homem em
sofrimento não havia respostas. “O céu eram planícies e planícies de silêncio. ” No
meio de tanta gente que por ele passava, o homem estava só, com a criança que
aconchegava nos braços.” Só eu tinha parado, surpreendida por aquela mistura de
miséria, sofrimento e beleza! “ Inutilmente. O homem nem dava pela minha presença!”
À semelhança dos discípulos, avisados por Jesus do seu próximo martírio, que não puderam evitar que o seu destino se cumprisse, também a narradora se sentiu impotente para auxiliar ou evitar o sofrimento daquele homem, que sendo um desconhecido, lhe
parecia ao mesmo tempo familiar. “Quis fazer alguma coisa mas não sabia o quê. “Irremediavelmente o homem e a criança, seguiam rumo ao seu inevitável destino! Tal
como Jesus caminhou para o calvário resignado à vontade e ao silêncio de Deus! Era
esse o aspecto do homem, que a narradora descreve.” Pai nas tuas mãos entrego o
meu destino, Lucas 23-24-46”Agora eu penso no que poderia ter feito. “Tal como
Maria, Mãe de Jesus, a narradora nada pode fazer, para evitar a queda daquele corpo,
que a multidão em círculo rodeava sem lhe permitir aproximar-se. Já a narradora tinha
tomado a consciência de que estava há muito gravada no “fundo da sua memória: “O
homem não era um estranho! “Era aquela a posição da cabeça, era aquele olhar, era
aquele sofrimento, era aquele abandono, aquela solidão”, que trouxe àquele
momento a comparação, com o sofrimento de Cristo, nos últimos momentos da sua
crucificação. ---“ Pai, Pai, porque me abandonaste?” Marcos, 15-16-21-34 e Mateus 27-
32-46.” Quem ergueu do chão aquele corpo ensanguentado? Quem tomou conta da
pequena “rosa orvalhada”? Apenas a chegada e a partida duma ambulância! “ E
rapidamente o círculo se desfez seguindo cada um o seu caminho.” O homem e a
criança tinham desaparecido! “ Este encontro da narradora com o homem que, sendo
um desconhecido, lhe trouxe à memória pela postura resignada, um outro Homem que
perante o sacrifício da sua própria vida, teve a bondosa coragem de pedir ao Pai
perdão para os seus algozes(” Perdoa-lhe Pai pois não sabem o que fazem.” Lucas-23-
33-34”) fê-la compreender e avisar-nos que O Homem continua por aí, pelas ruas da memória dos povos. “Continua ao nosso lado”!...


Elita Guerreiro 17 /5 / 2017

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