segunda-feira, 2 de abril de 2018

Para uma análise do conto "Miúra", Bichos, Miguel Torga

“PELA LEZIRIA, COM MIGUEL TORGA”

O carro rodava lentamente pela estrada esburacada e poeirenta, naquela manhã de sol radioso e quente. De um lado o Tejo, estreito fio de água límpida, na sua viagem rumo ao estuário em Lisboa; do outro, a
lezíria Ribatejana, a cerca de arame farpado que limita a herdade, para lá da qual pasta uma imensa manada de touros bravos. Parámos paraos admirar. Uma enorme mancha escura na paisagem  verdejante!...
Ruminavam calmamente. Uns deitados à sombra das muitas árvores ali existentes, outros passeando sobre a erva tenra e verde. Saímos do carro e aproximámo-nos da rede. Saindo da manada, um enorme touro negro correu para junto da vedação. Olhava-nos com a mesma curiosidade que nos levou até ali. Naquele olhar aquoso e meigo, não havia nada de agressivo. Aproximou-se mais um pouco, enquanto nós
recuávamos. Do nada, apareceu uma figura, uma dupla imponente: um homem idoso, montado num cavalo negro: pareciam homem e cavalo saídos de um quadro   primorosamente pintado!
- “Não se aproximem por favor!“
E ao mesmo tempo, chamou:
- “Malandro, vem cá! É que ele não é o que parece, cuidado!” - disse como que à guisa de justificação.
- Como lhe chamou? -perguntou alguém. O campino explicou:
 _ “Chama-se assim, porque parece dócil, mas quando embesta é o diabo!”
O Malandro nem se moveu. Fixou em mim os seus belos olhos e aproximou-se um pouco mais do local onde eu me encontrava. Senti vontade de lhe tocar, mas cobardemente não o fiz. Estremeci tão visivelmente, que um amigo perguntou:
- Estás com frio?
- Não – respondi. -  Estou com Miguel Torga.
 Todo o grupo riu imenso, sem perceber o que tinha Torga a ver com o que se estava a passar. Riam ainda quando voltámos ao carro.
 O Malandro raspou o chão com tanta força, que arrancou alguns bocados de erva.
- MUUU! - Berrou ao mesmo tempo que seguia o carro com o olhar. Contínuo a pensar que foi para mim aquela despedida. Eu e Miguel Torga estamos em perfeita sintonia no que diz respeito aos sentimentos dos animais…Como pode ser feliz um animal habituado à lonjura imensa da campina onde nasceu, sob o céu azul, o sol escaldante o murmúrio do Tejo, a figura do campino, quando é preso num estreito e escuro curro?
Pensei no Miúra, que Torga tão bem retrata! Tal como ele, o Malandro irá escutar a música, as palmas, os gritos da multidão que irão aplaudir aquele homem brilhante, que agita “um trapo vermelho” e o vai provocar continuamente para satisfazer a multidão delirante. O homem brilhante empunha uma espada e é o fim da vida livre de quem tendo sido um rei na imensidão da lezíria. Acaba assim profundamente humilhado.

 Mas nem sempre o homem brilhante sai vencedor… Descuide-se ele um pouco e vai pelos ares na ponta daqueles cornos monumentais, pois então!..


Elita Guerreiro*7/3/2018

 “M I Ú R A”

        No conto intitulado “Miura”, Miguel Torga retrata de uma forma muito fiel e realista o sofrimento de um pobre touro destinado a representar nas touradas.

        Não gosto de touradas. Sempre me impressionou o sofrimento dos infelizes animais, retirados do seu “habitat” natural para irem divertir as pessoas que apreciam esse espectáculo bárbaro e sanguinário.
        É um facto que nas touradas há todo um cenário de luz, cor e música, que emprestam certa beleza àquele ambiente. Mas, o que atrai principalmente os espectadores, é a luta entre o homem e o animal, num confronto de forças em que o primeiro, pela sua habilidade, inteligência e destreza, tenta vencer a força física, muito superior, do segundo.
        Tudo isto seria interessante se não implicasse um sofrimento horrível para os pobres animais.
        É verdade que os toureiros arriscam a vida.  É lamentável, mas fazem-no voluntariamente.
        O touro é arrastado à força para um espaço exíguo, em que se sente horrivelmente desorientado, ansioso e humilhado.
        Miguel Torga descreve, de uma forma magistral, não só o sofrimento físico de Miura, mas também os seus sentimentos. Porque Miura não sofre só a dor física. Mais intensa e profunda do que esta, é a mágoa cruel causada por os seus sentimentos mais nobres serem feridos de uma maneira brutal:
            - Primeiro, foi-lhe roubada a sua liberdade quando o arrancaram da lezíria ribatejana, onde tinha nascido e fora criado - uma planície cheia de sol e de espaço - para o encurralarem num cubículo apertado, onde não sabia o que lhe iria acontecer.
            - Depois, a sua dignidade foi aviltada, quando percebeu que ele, Miura, o rei da campina, estava condenado a ser apenas um objecto de diversão e escárnio.
        Seguiu-se a revolta, a cólera, a angústia, a raiva.
        Miura explodia de dor e a multidão, que vibrava de satisfação por o ver enraivecido, aclamava tanto mais quanto maior fosse a sua explosão de indignação e fúria.
        E, por fim, a terminar aquele sofrimento indizível, a recompensa que obteve foi a morte. Morte que, para ele, foi um alívio. Mas a multidão, brutal e selvaticamente, continuava a aclamar, com música, gritos e palmas, muitas palmas!...


                                                                 19/02/2018
                                                        Maria Leonor Marques


   Miura

No conto “Miura”, Miguel Torga volta a defender os animais, ao insurgir-se contra o espetáculo das touradas. Interessa relembrar que os primeiros registos daquela cultura tradicional remontam ao século XII. Em 1836, durante o governo de Passos Manuel no reinado de D. Maria II, foi decretada a abolição das touradas em Portugal. Porém, devido a pressões diversas, nomeadamente das Misericórdias e da Casa Pia, proprietárias da maior parte das praças de touros do país, as touradas foram de novo autorizadas com a condição das receitas dos espetáculos reverterem para instituições de carácter social. Assim, o lado solidário do espetáculo tem mais a ver com a estratégica para salvar as touradas do que outra qualquer razão benemérita pura. Miguel Torga, com este conto, juntou-se ao grupo daqueles que, desde há muito, se insurgem e lutam contra estes espectáculos próprios da insensibilidade de outros tempos.
Desta vez, dá voz ao touro bravo “Miura”, nascido e criado na lezíria ribatejana. Miúra conta-nos a sua situação de prisioneiro, prestes a entrar na arena para gáudio da multidão humana. O animal tenta libertar-se, mas em vão. A sua força, a sua raiva e a sua agressividade não conseguem contrariar a lei do mais forte e evitar a sua entrada forçada na arena. À semelhança de muitos outros touros, irá participar num espectáculo deprimente, onde será maltratado, humilhado e obrigado a lutar, de forma desigual, perante uma multidão ávida de emoções e de sangue. Durante a lide, o martírio foi longo, cruel, debaixo de grande algazarra da multidão, de muitos incentivos aos toureiros, gritos, assobios… e de muita música vinda da charanga da praça. A certa altura da refrega, Miúra atinge um dos seus algozes. Por fim, perante uma última investida do um novo opositor, que empunhava uma espada com selo de morte, apercebeu-se do que ia acontecer ali, em público, de uma forma cruel e espetacular. Face a essa certeza, decidiu apressar a sua morte, facilitando o trabalho à lâmina que o procurava atingir.

Fernando Amaral

Fevereiro de 2018


“OS BICHOS” DE MIGUEL TORGA
CONTO Nº. 12 «MÍURA»

A) - O porquê do nome
O nome Miura, que deu título ao Conto, é quase um elogio que Torga faz a uma raça de touros, considerada das mais perigosas e bravas da Península Ibérica.

B) – A Mensagem
O autor, através do texto, faz-nos reflectir  sobre o problema dos maus-tratos, que são infligidos aos animais pelo próprio Homem, somente por pura diversão.

O touro é também um ser vivo como todos os outros animais, como todos os seres humanos… por isso, não merece o tipo de tratamento que lhe é dado.

Há muita gente que considera a tourada como uma tradição ou um passatempo, mas outras pessoas há, que acham este espectáculo degradante e absurdo. Parece ser esta, também, a maneira de pensar do autor.

C) – A Crítica Social
Com este conto, Torga parece querer dar-nos a sua opinião, criticando a injustiça da tourada para com o touro que, para além de satisfazer o prazer do homem, passa por um enorme sofrimento.

D) – A Actualidade do Conto
A tourada remonta há séculos atrás, e consegue chegar aos nossos dias com muitos adeptos.

Existem várias associações ligadas aos direitos dos animais, que lutam há anos para que as touradas sejam definitivamente proibidas em Portugal.

Não há luz ao fundo do túnel, nem se vê jeito de que isso venha a acontecer.
Entretanto, os touros continuam a ser maltratados. Tudo não passa de um “um jogo” que pode levar à morte do animal ou do próprio toureiro, por vezes de forma trágica.

E) –Valores, Sentimentos, Emoções e Atitudes
Torga relata  sentimentos e emoções como a frustação, a humilhação e o sofrimento , que o touro sente antes de entrar na arena e, já na arena, a coragem, a angústia e, mais tarde, a constante espera da morte.
 Ex: “o manequim de lantejoulas,”(pág.113).
 “Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair do domínio dos chifres.” (pág. 114).

Miura já está a sofrer, quando lhe espetam vários ferros pontiagudos no cachaço, até à exaustão e, por fim, uma lâmina fina trespassa-o até às entranhas. É a morte!

“Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.” (pág. 117)

A multidão alucionada bate palmas e grita de satistação…
O que se passou naqela arena, dá que pensar!

- Este Mundo em que vivemos, não andará de cabeça para baixo?
- Afinal quem é que é selvagem?

Miguel Torga questiona as ideias pré-concebidas, que existem sobre as touradas, e acabe por pôr em xeque a natureza do homem, supostamente, civilizado.

Azeitão, 26-02-2016                    
Carmo Bairrada

Obra: OS BICHOS
Autor: Miguel Torga
Editora: Coimbra
7ª. Edição revista em 1970



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