segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Conto "O Morgado e o Ferrador", por Elita Guerreiro

“ O MORGADO E O FERRADOR”
CONTO

(A PARTIR DAS PERSONAGENS  “ABADE DE VARZIM” e “O DONO DA CASA” de “O Jantar do Bispo”, in Contos Exemplares)

Na pequena aldeia de gente humilde e trabalhadora, os seus habitantes trabalhavam de sol a sol. As crianças deixavam a escola cedo para ir trabalhar nos campos e assim ajudar os Pais a sustentar a Família. Tudo na aldeia e ao seu redor pertencia a uma só pessoa: “O Senhor da Casa Grande”. Os filhos estudavam na cidade, onde gastavam sem nenhum proveito, a fortuna que o Pai amealhara na exploração dos trabalhadores, homens, mulheres e crianças, que davam o suor do seu rosto, no amanho das terras, no corte das árvores, no tratamento dos animais, enfim…
Todo o ano havia trabalho! “O Senhor da Casa Grande” pagava, sim senhor…Mas os míseros tostões mal davam para alimentar dignamente quem humildemente o servia! Havia na aldeia alguém que enfrentava, sem receio, a arrogância do “Morgado”, como o povo chamava ao “Senhor Da Casa Grande!”
Era o velho ferrador, o “Ti Luís”! Vindo ninguém sabe donde, ali se estabeleceu, casou e por ali foi ficando!
Ali lhe embranqueceram os cabelos e a sua barba branca e o seu carácter cordial e simpático tornaram-no numa figura respeitada na aldeia! As crianças não o temiam, os rapazes pediam – lhe conselhos e os mais velhos gostavam de ouvir falar num vindouro tempo, no qual todos seriam iguais! Ora o “ Morgado” tinha um tesouro que todos bem conheciam: a sua linda égua branca à qual dera o nome de “Pestanuda”.
Era realmente um lindo animal! De belos olhos expressivos e longas crinas sedosas, era muito meiga e elegante! Mas toda esta beleza e elegância necessitavam cuidados e a única pessoa qualificada para tal era o ferrador!     O “Morgado” não gostava das “ideias avançadas”, como ele chamava à maneira de pensar do “Ti Luís “, que dizia influenciar os “Broncos “, assim se referia ele às famílias que para ele trabalhavam! Naquele dia, “ Pestanuda “ coxeava mesmo muito e não consentia que o dono lhe tocasse! E lá foi o “Morgado”, arrogante senhor, ordenar ao velho ferrador que tratasse o seu “tesouro”
-  Ora deixe lá Vossa Senhoria a rédea, que o resto é comigo!
Conforme falava, aproximava-se do animal, olhando- a nos olhos! A sua mão rude afagava-lhe ternamente a longa crina. Lentamente, a “Pestanuda” cedeu, deixando a sua elegante patinha ao cuidado do ferrador. Nem estremeceu, quando lhe foi retirado o espinho que a magoara!
- E agora?- perguntou de sobrolho carregado o “Senhor da Casa Grande.“
- Agora, vá Vossa Senhoria à sua vida, que a bela “Pestanuda” lá vai ter. Eu mesmo lha vou entregar, quando estiver capaz de andar. Já com um pé na soleira da porta, o “Morgado” retrocedeu e quase encostando a sua cara vermelhona às barbas imaculadas do ferrador, berrou:
-  Então vossemecê pensa que eu vou deixar a coisa que melhor tenho, nas mãos de alguém com ideias tão ruins como as suas? Ora vá lá dar conselhos aos”Broncos”que lhos pedem! A minha égua é muito minha!
 Sorrindo, o ferrador retorquiu:
- Valha-nos Deus, senhor” Morgado”! Então
Vossa Senhoria compara o seu animal, que é muito inteligente, sim senhor, aos seres humanos que lhe põem o pão na mesa e lhe tratam da casa onde vive?
Fora de si, o “ Morgado” respondeu e perguntou ao mesmo tempo:
- Quer vossemecê dizer que o “Bronco” sou eu? Eu que dou esmola aos pobres, que vou à missa todos os Domingos, que construí uma escola e mandei a minha Filha ensinar os Filhos desta gente…
- … que os tira de lá, mal aprendem a escrever o seu nome! Vossa Senhoria, não quer ver que o império que criou subjuga esta pobre gente? Como podem frequentar a escola se têm que trabalhar? Pague aos Pais o valor justo pelo seu trabalho, para que os Filhos possam estudar!
- Pobre gente, diz vocessemecê? Pobres são os que não podem trabalhar e vão à minha porta pedir esmola!...
- Que o não faria se o senhor tivesse dado às Famílias condições para os tratar e sustentar!
 “ O “Morgado”, furioso, gritou-lhe:
- Acuso-o de rebelião na minha aldeia, de virar as pessoas contra quem as sustenta!
 Sem se poder conter, o ferrador retorquiu:
- E eu acuso-o de desumanidade, de falsidade fanática e imodéstia!
Como se entendesse as palavras do velho Ti Luís, a “ Pestanuda”, na cama de feno onde repousava, relinchou, sacudiu a bela crina e chegou o focinho cor-de-rosa ao avental de couro do ferrador!...
  Elita Guerreiro* 25/ 11/ 2016


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