segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Citações e evocações... en-cantos e re-contos da literatura tradicional


Falo de ti às pedras das estradas, 
E ao sol que e louro como o teu olhar, 
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar

Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

Florbela Espanca, in A Mensageira das Violetas


As Fadas
As fadas... eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar...

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer...
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder...

O vestir... são tais riquezas,
Que rainhas nem princesas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu...

Quando a noite é clara e amena
E a lua vai mais serena,
Qualquer as pode espreitar,
Fazendo roda, ocupadas
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.

O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flores,
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.

Eu sei os nomes de algumas.
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areais,
Vive junto ao mar, sozinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos baptizados reais.

Morgana é muito enganosa:
Às vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir...
Ora festiva, ora grave,
E voa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.

Que direi de Melusina?
De Titania, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja glória
Enche as páginas da história
Dos reinos de el-rei Merlin?

Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha do condão.

O que elas querem, num pronto
Fez-se ali! parece um conto...
Mesmo de fadas... eu sei!
São condões que dão à gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou jóias, que nem um rei!

A mais pobre criancinha
Se quis ser sua madrinha,
Uma fada... ai, que feliz!
São palácios, num momento...
Beleza, que é um portento...
Riqueza, que nem se diz...

Ou então, prendas, talento,
Ciência, discernimento,
Graças, chiste, discrição...
Vê-se o pobre inocentinho
Feito um sábio, um adivinho,
Que aos mais sábios vai à mão!

Mas, com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não há-de rir.
Querem elas que as respeitem
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes há-de mentir.

Quem as ofende... cautela!
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!

E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis,
Que nascem logo no chão...
Línguas de fogo que estalam!
Sapos com asas, que falam!
Um anão preto! um dragão!

Ou deitam sortes na gente...
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer...
É-se morcego ou veado...
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser!

Por isso, quem por estradas
For de noite e vir as fadas
Nos altos, mirando o céu,
Deve com jeito falar-lhes,
Ser muito cortês e tirar-lhes
Até ao chão o chapéu.

Porque a fortuna da gente
Está às vezes somente
Numa palavra que diz.
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa
E torna-o logo feliz.

Quantas vezes, já deitado,
Mas sem sono, ainda acordado,
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar...

O que seria? um tesouro?
Um reino? um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palácio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?

Ou podia, se eu quisesse,
Pedir também que me desse
Um condão, para falar
A língua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos...
Ou então, saber voar!

Oh, se esta noite, sonhando,
Alguma fada, engraçando
Comigo (podia ser!)
Me tocasse com a varinha,
E fosse minha madrinha,
Mesmo a dormir, sem a ver...

E que amanhã acordasse
E me achasse... eu sei? me achasse
Feito um príncipe, um emir!...
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando...
Deixa-me já já dormir!

Antero de Quental, in Tesouro Poético da Infância

I - - FADAS BOAS E FADAS MÁS
Há duas espécies de fadas: as fadas boas e as fadas más. As fadas boas fazem coisas boas e as fadas más fazem coisas más. As fadas boas regam as flores com orvalho, acendem o lume dos velhos, seguram pelo bibe as crianças que vão cair ao rio, encantam os jardins, dançam no ar, inventam sonhos e, à noite, põem moedas de oiro dentro dos sapatos dos pobres. As fadas más fazem secar as fontes, apagam a fogueira dos pastores, rasgam a roupa que está ao sol a secar, desencantam os jardins, arreliam as crianças, atormentam os animais e roubam o dinheiro dos pobres. Quando uma fada boa vê uma árvore morta, com os ramos secos e sem folhas, toca-lhe com a sua varinha de condão e no mesmo instante a árvore cobre-se de folhas, de flores, de frutos e de pássaros a cantar. Quando uma fada má vê uma árvore cheia de folhas, de flores, de frutos e de pássaros a cantar, toca-lhe com a sua varinha mágica do mau fado, e no mesmo instante um vento gelado arranca as folhas, os frutos apodrecem, as flores murcham e os pássaros caem mortos no chão. 
Sophia de Mello Breyner Andresen, in A FADA ORIANA

BARCA BELA 

Pescador da barca bela, 
Onde vais pescar com ela. 
Que é tão bela, 
Oh pescador? 

Não vês que a última estrela 
No céu nublado se vela? 
Colhe a vela, 
Oh pescador! 

Deita o lanço com cautela, 
Que a sereia canta bela... 
Mas cautela, 
Oh pescador! 

Não se enrede a rede nela, 
Que perdido é remo e vela, 
Só de vê-la, 
Oh pescador. 

Pescador da barca bela, 
Inda é tempo, foge dela, 
Foge dela 
Oh pescador! 

Almeida Garrett, Folhas Caídas

A Fada das Crianças 

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças, vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia —
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas…

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas…
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

Fernando Pessoa

A Criança que Pensa em Fadas

A CRIANÇA que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

Elfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais
Sombras e bafos leves
De ritmos musicais...
Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde,
Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ou esconde...
Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal ouço e quase choro...
Porque choro não sei...
Tão ténue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Os pinhais e eu estar triste...
Mas cessa, como uma brisa,
Esquece a forma aos seus ais,
E agora não há mais música
Do que a dos pinheirais...
Fernando Pessoa, 25-09-1914

    Quando eu morrer, filhinho, 
     Seja eu a criança, o mais pequeno. 
     Pega-me tu ao colo 
     E leva-me para dentro da tua casa. 
     Despe o meu ser cansado e humano 
     E deita-me na tua cama. 
     E conta-me histórias, caso eu acorde, 
     Para eu tornar a adormecer. 
     E dá-me sonhos teus para eu brincar 
     Até que nasça qualquer dia 
     Que tu sabes qual é. 
     ..................................................................... 
     Esta é a história do meu Menino Jesus. 
     Por que razão que se perceba 
     Não há de ser ela mais verdadeira 
     Que tudo quanto os filósofos pensam 
     E tudo quanto as religiões ensinam?

    Alberto Caeiro, VIII

Dicen que no hablan las plantas, ni las fuentes, ni los pájaros,
Ni el onda con sus rumores, ni con su brillo los astros,

Lo dicen, pero no es cierto, pues siempre cuando yo paso,
De mí murmuran y exclaman:
—Ahí va la loca soñando
Con la eterna primavera de la vida y de los campos,
Y ya bien pronto, bien pronto, tendrá los cabellos canos,
Y ve temblando, aterida, que cubre la escarcha el prado.

—Hay canas en mi cabeza, hay en los prados escarcha,

Mas yo prosigo soñando, pobre, incurable sonámbula,
Con la eterna primavera de la vida que se apaga
Y la perenne frescura de los campos y las almas,
Aunque los unos se agostan y aunque las otras se abrasan.

Astros y fuentes y flores, no murmuréis de mis sueños,

Sin ellos, ¿cómo admiraros ni cómo vivir sin ellos?

Rosalìa de Castro (poetisa galega)


XÁCARA DAS BRUXAS DANÇANDO
1.
Era outrora um conde
que fez um país,
com sangue de moiro,
com laranjas de oiro,
como a sorte quis.
Há bruxas que dançam
quando a noite dança,
são unhas de nojo,
são bicos de tojo,
no tambor da esperança.
Ventos sem destino
que dizeis às ramas?
Desgraça bramindo
é a nós que chamas.
No país que outrora
um conde teceu
com laranjas de oiro,
com sangue de moiro,
tudo apodreceu.
Anda o sol de costas
e as bruxas dançando
e os ventos do norte
sobre nós espalhando
as tranças de morte.
As estrelas mortas
apagam-se aos molhos:
vem, lume perdido,
florir-nos os olhos.
2.
Ama, estarás ouvindo
a história que vou contando?
Ó ama pátria dormindo
desde quando?
Desde tempos e memórias,
desde lágrimas e histórias,
desde cóleras e glórias,
agora te estou chorando
e tu dormindo
até quando?
As bruxas andam lá fora
e eu chorando
versos do país de outrora.
Dançam bruxas a ganir
de mãos dadas com o vento.
Ama, acorda; sopra o lume;
e não me deixes dormir
na noite do pensamento.
3.
Ó castelos moiros
armas e tesoiros,
quem vos escondeu?
Ó laranjas de oiro,
que vento de agoiro
vos apodreceu?
Há choros, ganidos,
à luz da caverna
onde as bruxas moram,
onde as bruxas dançam
quando os mochos amam
e as pedras choram.
Caravelas, caravelas,
mortas sob as estrelas
como candeias sem luz;
e os padres da inquisição
fazendo dos vossos mastros
os braços da nossa cruz.
As bruxas dançam de roda
entre o visco dos morcegos,
dançam de roda, de rojo,
dançam voando, rasgando
a noite morta do povo
com as unhas, bicos de tojo.
4.
E o tempo murchando
a luz de idos loiros.
Ama, até quando
estaremos chorando
os castelos moiros?
Lá vão naus da Índia,
lá se vão tesoiros.
E as bruxas dançando
e os ventos secando
as laranjas de oiro.
Ama, até quando?
Na noite das bruxas
o lume no fim
e o vento ganindo.
Ama, estarás ouvindo?
O lume no fim
e os homens dispersos.
Ama, tens frio;
cinge-te a mim
e aquece-te ao lume
queimando os meus versos.
Carlos de Oliveira

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