sexta-feira, 6 de junho de 2014

Sebastião da Gama: o MAR (selecção de poemas)

Céu

Tenho uma sede imensa,
mas não é de água…

Tenho uma sede imensa de beber
os soluços do Sol quando declina,
as carícias azuis do Luar de Agosto,
os tons rosa da Tarde que se fina…

É que eu seria poeta, se os bebesse…
Não mais seria o cego de olhos limpos;
esse que viu a água e a não tocou,
pelo estranho pudor da sua boca
que um dia blasfemou.

E, se eu pudesse beber
esses longes de mim que vejo e quero,
em espasmos havia de os mudar
e, num desejo nunca satisfeito,
iria possuir-te, ó Mar!

Havia de cair, num beijo sobre ti;
despir as minhas vestes de serrano,
tirar de mim aquilo que é humano,
E confundir-me em ti.

Gritem depois, embora, que eu morri;
alegre o Mundo o alívio do meu peso;
- que um dia o Sol há-de surgir mais cedo
e o bom menino de olhos azuis,
de quem sou fraco arremedo,
há-de nascer, ó Mar, da nossa noite de Amor!

E tu, Menina que eu chamava,
Menina que eu chamava e encontrei
Mas abrasada no Amor divino
- tu hás-de ver então que o Céu que idealizas
É o olhar azul desse menino.

In “Serra - Mãe

DIÁRIO DE BORDO

Cá estou eu, a julgar que vou remando...

Cá vai Deus a remar
e eu a ser um remo com que Deus
rasga caminhos pelo Mar...
in Serra

 CLARIDADE

De minha vida não sei
senão que sou feliz.
Lá o que fui ou fiz
antes de ser o que sou,
ai!, tudo me passou,
só sei que sou feliz.
E que me importa a cor
das águas que passaram?
Estas águas me bastam
que vão correndo agora.
Fosse o que fosse, a minha
passada vida incerta
(feliz ou desgraçada),
foi uma porta aberta
pra esta vida clara.
Por isso eu a bendigo,
a minha vida ida.
Talvez as rosas nela
tivessem bem mais cor,
o Sol mais Luz e Amor,
e música mais bela
a viração, então;
mais verde fosse o Mar...

 - Mas que vale o que foi,
se, quanto vejo ou provo,
tem tudo um gosto novo?...
Se nada cansa ou dói?...
Se as rosas, para mim,
nasceram mesmo agora,
e as aves e o Mar?...
Se o Sol aconteceu
ao mesmo tempo que eu
olhei à minha roda
e vi o meu presente
a ser-me a vida toda?...
in  Serra

CANÇÃO INÚTIL

Nunca o Mar me quis ter nas suas ondas
enrolado e perdido
Sou o Poeta das manhãs fecundas:
vivo me quer o Mar, para cantá-las.

Ó Mar, onde se acaba
tudo que é vão!
Ó Mar feito do nada dos regatos
e dos rios efémeros!
Saibam minhas manhãs a maresia!
Haja ranger de cordas de navios
e searas de limos e de peixes,
haja a violência harmónica das ondas nas manhãs que dão cor aos meus poemas!

Tudo fala verdade ao pé do Mar.
Mesmo as nuvens são velas que se rompem,
castigadas de um Sol que é vento puro
e que tem o direito de passar.
Andam gaivotas tontas à deriva
(acenos da ternura da Manhã…). Tinem, nos estaleiros, marteladas.
E os motores monótonos, os gritos
dos homens e das aves, o inquieto
verbo do Mar, nas rochas espalmado
a todos os minutos, desde há séculos, tudo revela a esplêndida verdade
de ao pé do Mar, em tudo que é do Mar, a Vida estar desperta.

É o ar da Manhã, hálito puro do
Mar, que enfuna as velas orgulhosas desta canção poético-marítima. 
Religiosamente aqui desfio
meu rosário de vagas.
Canção inútil!
Clarim que anunciou a Madrugada depois de a Madrugada ter florido…
In Cabo da Boa Esperança

VERSOS AO MAR

Ai!,
o berço da tua voz,
e esse jeito de mão que tens nas ondas,
Mar!

Quando eu cair exausto
sobre as conchas da praia e fique ali
doente e sem ninguém,
hás-de ser tu quem me trate,
quero que sejas tu a minha Mãe.

Há-de embalar-me a tua voz de berço,
pra que a febre me deixe sossegar,
e hás-de passar, ó Mar!
pelo meu corpo em chaga,
as tuas mãos piedosas comovidas,
pra que sintas por mim as minhas dores
e eu sinta só o bálsamo nas feridas.

Como se fosses tu a minha Mãe…
Como se fosses tu a minha Noiva…

E hás-de contar-me histórias velhas
de Marinheiros…
Histórias de Sereias e de Luas
que se perderam por ti…
E se a Morte vier há-de quedar,
toda encantada, a ouvir-te,
e, sem ânimo já me há-de quedar,
Toda encantada, a ouvir-te,
E, sem ânimo já de me levar,
sorrindo, voltará por seu caminho
(não na sentimos vir, nem ir, tão de mansinho
se passou tudo, Mar!),
voltará de mansinho,
pé ante pé, pra não nos perturbar,
 mas saudosa da tua voz de berço…

Sebastião da Gama, Serra-Mãe

Cais

Já o cais não é de pedra,
de tanto sentir o Mar.
Já não é, a pedra, lisa:
já ganha forma de velas
pandas de vento e de orgulho;
já deixou de ser branquinha
p'ra ser azul como as águas.

Já cordame, que o sonha
noite e dia sobre o cais,
o tem o sonho mudado
em algas prenhes de iodo.
Degraus de pedra se animam
e pelas ondas se atrevem
-botes sem mestre, perdidos,
sem outro leme que o gosto
de ir pelas ondas adentro.

Marujos que o nunca foram,
assentadinhos no cais
desde a hora de nascer,
quem foi que disse que tinham
raízes naquelas pedras?
- Já lhes despontam nas costas,
já por ares e mares os levam,
asas leves de gaivota.

Cada traineira que passa
convida o cais a sair.
Já o cais não é de pedra.
O sal moldou-lhe uma quilha, 
as ondas o encurvaram,
os limos o arrastaram
p'ra lá de todo o limite,
e o cais cedeu ao convite
de ser um barco sem mestre.

Lá vai perdido nas ondas
e não lhe importa a chegada.
Deitou a bússula ao Mar.
Fez uma estaca do leme,
que atesta o sítio em que foi.
Voltou as costas à terra
e o seu destino cumpriu-se,
que era partir e mais nada.
In Campo Aberto

 CANÇÃO DO VENTO NORTE

Vento Norte !,
Vento Norte !
Não quero já, noutro berço
que o Vento Norte !
O que estilhaça os navios
e enche de pranto os rosais ;
me traz notícias de crimes
e faz tremer como vimes
os meus lábios ...
Não mais a vida pacata,
Sentadinha, sentadinha,
que não é vida nem é nada .
Que me doa, mas que eu viva !
Que importa os gritos que der,
se bem maiores os deu
minha Mãe, pra me parir ?

Vem-me embalar, Vento Norte !,
nem que me quebres o berço.
Vamos os dois por i fora
pregar partidas aos lagos.
Minhas horas descansadas,
minhas horas morrinhentas,
só vividas
no mostrador do relógio,
eu vos renego e acuso
por crime de alta traição
contra a minha mocidade.

Agora que venha o Vento
apagar vossa lembrança !
O vento Norte ...
O que desfolha os rosais
e põe barcos em frangalhos
e rasga nossos cabelos
como a bandeira de Guerra,
mas varre as nuvens
para a gente ver o Sol
e segreda a meus ouvidos
coisas de tanta verdade
que já não creio que o Vento
não seja da minha idade ...
in Cabo

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