terça-feira, 8 de outubro de 2013

Sebastião da Gama: percurso II (Liberdade)


CANTILENA
Cortaram as asas
ao rouxinol.
Rouxinol sem asas
não pode voar.


Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol,
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver.

Sebastião da Gama, Cabo da Boa Esperança
Oiça este poema musicado por Francisco Fanhais

ENCARCERAR A ASA
Encarcerar a asa é encarcerar a alma. Isso sim. É que há muita asa que não pensa; asas que não sintam é que não.
Mas eu não preciso de símbolo para me negar a ver os pássaros na gaiola. Basta-me ser fraterno. Para que vivemos  no Mundo há tanto tempo se não sabemos ainda que os bichos são criaturas com alma? Até os das fábulas, quando calha… Ora pensem lá um bocadinho no «Leão Moribundo»… É leão mesmo ou é principalmente um leão. Quantas vezes se esquecem os fabulistas de que era dos homens que queriam falar!
Asa encarcerada, não. Nem asa de pássaro, nem asa de grilo. Uma fê-la o Senhor e disse-lhe «Voa!» À outra:
«Canta!» A nenhuma (nem a nós deu a ordem, claro está) que se metesse numa gaiola. No entanto é a gaiola domicílio muito habitual do pássaro e do grilo. Ao grilo prendem-no as crianças, sob o sorriso dos pais. Ao pássaro os pais, sob o sorriso dos filhos. Má escola esta. Principalmente porque se diz depois: «Que bem canta!, que bem canta!» Nem se chega a aprender a diferença que vai do canto ao choro. Pois um pássaro encarcerado, ou um grilo, canta lá!?…Os pássaros cantam é nas linhas do telefone, nas árvores, na beira dos telhados… Os grilos é na toca ou ao pé da serralha. Na gaiola choram. É o fado dos ferros.
Mas os que abriram a grade não entendem! Se eles abriram a grade!… E vá de não perceber que o fato preto do grilo já é outro, já não é o seu fato de trazer: o grilo agora está de preto, porque está de luto. De luto por si mesmo.
Os meus vizinhos têm um bicho numa gaiola. Um pintassilgo. Pois se eu andasse zangado com a Vida, que não ando (apesar de tanto mal que me tem feito, há tantas coisas boas que a Vida dá e me dá!), era por causa do pintassilgo que me reconciliaria com ela. Com ela e com os homens – se eu andasse zangado com os homens… Era ao lusco-fusco. Frio como só cá no meu Estremozinho. Batem à porta, vou ver. Uma velhinha. «Ó senhor, o pintassilgo é seu? É para o recolher, que o animal apanha muito frio.»
Ó velhinha santa, velhinha dos livros! Naturalmente, se te estivesse à mão a gaiola, soltavas o pintassilgo. Mas o que pudeste fazer é tão grande! Não sabes duas letras, provavelmente. E ainda se persiste no erro de que a grande desgraça é não saber ler. Qual coisa! A grande desgraça é não saber que os pássaros têm frio.
Estremoz, 25/1/52
Sebastião da Gama, o Segredo é Amar

1 comentário:

Unknown disse...

Luisa

Que belo trabalho.Bjs Carmo